quarta-feira, dezembro 31, 2008

BOM ANO!




Bom Ano Novo para todos os que aqui passam!

sábado, dezembro 27, 2008

Cessaram os cânticos




Este é o tempo branco
Em que se calam os cânticos
Há uma doçura no horizonte
Em que a espera se arrasta

É um espaço, um salto
Um saber de distância calada
Sem um som um murmúrio
Que rasgue os muros verticais

Parados no limbo do tempo
Abrem-se os caminhos do silêncio
Entre alamedas de risos coloridos
Por onde ecoa o sentido das horas
                  que a luz do sol é lá fora.

domingo, dezembro 14, 2008

Devia escrever sobre o Natal...




Fogem-me as palavras nestes dias de sentimentos ambivalentes. Devia escrever sobre o Natal, as Festas, este espírito obrigatório de bondade e solidariedade. E as palavras rebelam-se. Não sei falar de fantasmas dos Natais passados nem prever os dos Natais futuros. Nem sei bem dizer porque, no meio das luzes e do calor das reuniões de entes queridos, me doem todas as solidões do mundo. Somos mais frágeis nesta época? Mais sensíveis ao que contradiz o clima de paz e amor da quadra? Fogem-me as palavras, sim. Foge-me a memória para todos os que deviam estar na minha vida e (já) não estão. Vagueia o pensamento por quem, passe o lugar comum, não tem Natal. De que serve a solidariedade com data marcada? Como diz António Gedeão:

"É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria."


É essa a hipocrisia da data. Não sendo católica, falha-me o seu sentido religioso. E o profano enferma de todas as contradições inegáveis.
Podemos ser felizes no Natal? Devemos. Como nos outros dias, a nossa vocação deverá ser a da felicidade, ou a das pequenas felicidades que a constroem. Mas isso já é toda uma outra história…


[Feliz Natal a todos os que por aqui passam. Volto lá para o fim do mês.]

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Penélope




a espera marca o bater das horas
em que teço o manto com que me tapo
e destapo
faço e desfaço enlaces
de fios que se tocam, entrelaçam
e deslaçam
sem que o coração alcance o barco
longe do porto
leio nos laços que deslizam nos dedos
a incerta certeza de te reconhecer
se os teus passos se firmarem na terra
chão expectante do meu corpo

domingo, dezembro 07, 2008

onde se esconde o sol?



há vultos molhados de melancolia
no recorte brilhante das luzes
de pretenso calor
o fim do dia baixa a cortina
no horizonte da cidade
tudo se questiona nesta hora
de claros desencontros
e esperas sem esperança
por certo a luz virá num dia novo
mas quem sabe onde se esconde o sol?

quarta-feira, dezembro 03, 2008

de.gelo


by K.I.M.R.Y


fechei os olhos para ver
a cor dos sons que pairam
sobre a pele fria
do corpo.
há neles um incêndio inquieto
chama hesitante
onde as mãos degelam
a capa branca
da solidão.

domingo, novembro 30, 2008

vórtice



agora não me largues a mão. caio em espiral por todos os dias pintados numa cinzenta cortina de água. vórtice sem fim. a chuva da infância deixava poças nos campos. obrigava às galochas de borracha . e à raiva de ter que as usar. lembras-te? não, tu não estavas lá e nem sei se usaste galochas de borracha. e, se me lembro bem, também não estavas quando a água caía gelada e em mim já havia um calor púbere. ou serias tu com outro rosto. jovem, jovem, como se pode ser tão jovem? alguma vez foste tão jovem? e o vórtice que me arrasta. pequenos guarda-chuva, pequenas galochas com bonecos, beijos e sorrisos. também não eras tu. nunca foste ou foste sempre? agora já deixo que o vórtice me leve. não quero parar. ou talvez sim. algures em frente ao mar. lá fora a cortina de água adensa-se em tempestade. e nós isolados. nós? não tu. ficaríamos ali e um dia alguém nos encontraria. sonhos, sonhos. alguma vez sonhaste assim? deixo que a espiral me puxe para mais próximo do momento em que começou a ser o teu rosto. as múltiplas faces de ti. e a chuva em dias de natal próximo. com cânticos dos pedintes para lá da janela. e nós, finalmente nós. estou a chegar. sei que a espiral da memória me vai atirar para aqui onde a água bate nos vidros. agora não me largues a mão. de ti já vi todos os rostos escondidos por trás do véu de água.

quarta-feira, novembro 26, 2008

lonjura




que dizer desta lonjura
que se me espalha nos olhos
como névoa sem levante?
que falar deste torpor
que as tardes em si carregam
e sobre mim se depõe?

guardo as palavras restantes
no claro cristal da memória
esperando o raiar do sol.

domingo, novembro 23, 2008

As tuas mãos



by Xavier Baglin

E sempre as tuas mãos. Sacrário de silêncio onde celebrava o misticismo do amor. Unguento sobre a pele. Pelo toque me davas o pão do teu corpo. A água que o sincelo da minha alma gerava, matava-me a sede. Naquele eremitério feito de horas isoladas procurávamos a infinitude improvável. Precisávamos urdir uma rede fina, preciosidade de protecção contra a auto comiseração e a aleivosia dos outros. Talvez a malha fosse larga demais. Por ela fugiu tudo o que ritualizava o amor e, por fim, até as tuas mãos.


[Este é um dos textos que escrevi para o 8º Jogo das 12 palavras. Publico-o aqui, hoje, também como uma forma de celebrar o lançamento, no sábado, do Livro "22 Olhares sobre 12 palavras". Podem ver a reportagem aqui, aqui e aqui (obrigada, Nina.)]

quarta-feira, novembro 19, 2008

Marta Maria Mulher




by Vermeer, Christ in the house of Martha and Mary

“Martha, Martha, you are worried and distracted by many things. There is need of only one thing. Mary has chosen the better part, which will not be taken away from her”.’

Fala de Jesus na casa de Marta e Maria

A acreditar no que a Bíblia nos diz, só há necessidade de uma coisa. A fé e o amor incondicional. A escolha de Maria que acreditou, confiou cegamente e se dedicou exclusivamente à adoração e bem-estar daquele que amava.
Sempre me senti a viajar entre Marta e Maria. Sem que isto tenha algo a ver com crença religiosa. Marta é a acção necessária, a dúvida sistemática, o olhar virado para o mundo material. Maria é a confiança cega, a adoração, a total entrega a um amor (divino ou não). Marta desconfia de milagres, a não ser os que ela própria consegue. Maria crê cegamente nos milagres do Jesus que adora.

Como seriam, no mundo de hoje, Marta e Maria? Não sei sequer se este louco mundo permite a existência de tais estereótipos. Em proporções diversas, temos todas algo de Marta e algo de Maria. Agimos, trabalhamos, duvidamos e amamos na mesma medida. A vida divide-se em tantos compartimentos, as solicitações são tantas que damos de nós x de Marta e y de Maria, em cada caso. Para encontrarmos um qualquer z, solução das situações por que passamos. Mas como nos sentimos mais, quando estamos sós, perante o nosso espelho interior? Eu não consigo deixar de me sentir, apenas, Marta Maria Mulher.

sábado, novembro 15, 2008

ténue


sinto-me ténue
miragem indiferente
nuvem de vapor criada
pelo toque do sol quente
na pele do asfalto molhada

quarta-feira, novembro 12, 2008

no crer de te querer


é valsa volteio
roda que rodeia
mar de marear
tango que me tange
corda que acorda
ecos recuados
som fora do sono
jeito de enjeitar
ritos já sem grito
no crer de te querer

segunda-feira, novembro 10, 2008

Memória



Não sei se é o cheiro da casa ou o frio que a entranha por desabitada, sozinha. Uma casa de vozes ecos de tanto tempo atrás que já nem sei se os confundo. Talvez as tias avós já não se separem na memória e a bisavó não vestisse sempre de negro. Dela sei os últimos dias naquela cama grande e o sussurrar dos outros no corredor. E eu pequena demais naquele canto da casa. A pensar que era tudo exagero dos outros, as bisavós não desaparecem, não morrem (o que era a morte naquele tempo?). Um desaparecimento, um ir embora. Mais tarde, quando uma das tias avós (qual delas, agora já tudo é nebuloso) “desapareceu”, já sabia o que era a morte. Tinha-a visto nos olhos dela, dias atrás. Sorriu e despediu-se com a morte nos olhos. E eu rapariga, já mais que adolescente, sem surpresa quando me disseram: a tia morreu.
Nesta casa aparecem-me assim estas confusas memórias e sou sempre pequena a um canto, fugindo das lágrimas da mãe que nunca ali conseguiu paz para viver. Só depois, só quando abandonámos a casa. E ela foi ficando assim desabitada, sozinha. Já nem o pai, já nem ele para nos ligar ao cheiro da casa, para nos levar lá nos Natais como se ali fosse o nosso lugar raiz. Não sei se alguma vez foi, para mim, raiz. Já nem o pai. Terei também visto a morte nos olhos dele? Antes um adeus. E não quis acreditar. Não quis. E depois só me lembro das crianças, tão pequenas elas também, pelos cantos de outras casas. Tão pequenas que a menina que se encolhia dentro de mim precisou crescer. Esta casa traz-me sempre confusas memórias. E outras, claras e lúcidas. Demasiado nítidas.

sexta-feira, novembro 07, 2008

Por vezes falo de nuvens



Nem só pedras
Nem só terra agreste
Nem só águas em sobressalto

Por vezes uma nuvem branca em céu claro
Sol velado por novelos de sonho
O caminho feito em redor do poço
Na espera do jorrar da água
E o lançar da alma na espuma do mar
Cobiçando o azul intangível

terça-feira, novembro 04, 2008

Ana à janela



by Dominique Dupont & Christian Duprez

Ana olhava o mundo através do vidro sujo da janela. Aquele que conhecia, pelo menos. Existiam outros mundos, diferentes. Isso tinha-lhe dito o homem de olhos cor de mel, no tempo em que as mãos dela faziam ninho nas dele. Tinha-lhe dado um relance, um olhar distante sobre esses mundos. Depois partira. Ou, na verdade, não. Um silêncio gritante viera preencher o espaço entre eles. Ana deixara-o partir, devagar, despedindo-se um pouco em cada dia. E, nesse tempo, não olhou para o vulto dele, afastando-se. Nesse tempo julgava saber muito, quase tudo. Alcançaria esses mundos, sem ele. Ou viveria feliz no seu. Sem dependências, sem frustrações. Ana julgava saber quase tudo… Depois veio aquela era em que atravessou o deserto. E o tempo dos oásis de água inquinada. Sobreviveu mas não encontrou mundo algum que fosse diferente. E voltou para trás do vidro da janela. Cada vez mais sujo. Julgava ter avistado os olhos cor de mel, procurando-a na distância. Mas como ter a certeza? Aquele vidro baço impedia-a de ver claro. Podia ter aberto a janela. Não o fez porque, lá fora, no mundo de sempre, estava demasiado frio.

sábado, novembro 01, 2008

vento que perturba



há um vento que perturba
o remanso das árvores
um tremor do ar, uma inquietação
um sopro de pó que arrasta a palavra
a espalha e volteia em espirais de dança
um vento da terra, uma mutação.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Por vezes penso que...




Estamos na vida de acordo com conceitos aos quais atribuímos um valor. Ideias, regras. Positivas e negativas. Céu e terra. Nuvens e lama. Branco e negro. Veludo e serapilheira. Amor e sexo. Vida e morte.
Vamos assim até ao limite de nós próprios. Do nosso corpo. Ou da alma? Só então corremos entre céu e terra. Provamos a chuva das nuvens e espojamo-nos na lama. Sentimos a claridade do branco e o medo das trevas. Pomos sobre a pele veludo e serapilheira. Amamos e fazemos amor. Ou apenas sexo. Vivemos e morremos.

domingo, outubro 26, 2008

Instável jangada



Já nos meus olhos não encontras a doçura da terra
após a chuva
nem o sonho reflexo de seres além
daquilo que és.
Nestes dias tão convexos, incertos somos tu e eu
dos rumos que a vida nos reserva.
Não diremos nem verdade nem mentira
e no equilíbrio de uma instável jangada
partimos à procura do tempo que se esgota.
Não sei falar-te mais o que ficou por dizer
palavras e dias de encantos perdidos.
Escondo o poema de mim e do querer
e na distância nublada de mágoa
sem me entender te digo: meu amor.

quinta-feira, outubro 23, 2008

(e)liminar


eliminar
a parte de um todo
separar o que não pode
ser partido
sublimar o grito do parto
de mim
de ti
no oculto som da palavra
secreta
subliminar

segunda-feira, outubro 20, 2008

Afirmação




(…)
Quero-te na orla afiada
da palavra que te envolve
e em arco me alcança.
(…)

Agosto 2005



É no silêncio por dentro da pele que te procuro
E te nomeio como outrora
Sem que a força da palavra silenciada
Expluda em cascata de ilusão
Não te quero pelo nome que te dei
Quero-te. Só.

sábado, outubro 18, 2008

Sem querer




Terá havido um dia em que o amor se soltou. Entre os homens desta era. Sem querer, sem querer… Como podia espalhar a peste que nos quebra por dentro, perseguimo-lo. Acho que morreu. Sem querer, sem querer… Que fazer, agora? Só me falaram de um ressuscitado. Mas esse pertence ao reino dos céus e não me consta que consiga corporizar-se. Não nestes tempos.

quarta-feira, outubro 15, 2008

Trilho antigo



Enfrento aquele trilho antigo
onde os pés magoados já sabem os escolhos
espinhos conhecidos a evitar
Levo comigo a antiga mala para as cinzas
de fogueiras altas
os ecos de risos nas montanhas e um saco
cheio de enganos
Pesado é o lastro que em mim se cola
sem afago de partilhas desejadas
sei que o caminho não se adoça em verde relva
nem as pedras jorram água sobre as chagas.

Por isso hesito no passo
e aplaino veredas onde se escondem mágoas.

domingo, outubro 12, 2008

Ataque de lucidez



Dorme a casa como um conjunto orgânico do qual só ela destoa. Naquelas horas de silêncio, a lucidez atinge-a duramente sem que se possa defender. Gira sobre si própria, procurando o refúgio do sono. Sem resultado, porque tem a perfeita noção de se estar a observar de fora do seu corpo. Menina, perguntara uma vez à mãe se era possível ser actor e espectador, ao mesmo tempo. O ar de espanto e inquietação da mãe ainda hoje a fazia sorrir. De quem teria herdado aquela quase maldição de se ver (e aos outros) como se não estivesse lá, como se apenas observasse?
Eles dormem. Eles, os outros dentro da casa. Gostava de saber os seus sonhos, os que não contam e os assombram como a ela, pelas horas da noite. O pensamento voa para outra gente que àquela hora também dorme, gente que cruza a sua vida e com ela interage. Saberão como ela os vê, por vezes? Sente-se desconfortável, como se estivesse a trair pessoas que ama. Na verdade é a si própria que trai, à sua capacidade de se dar sem limites, ao seu desejo de acreditar no que de bom os dias trazem. Será sempre assim. Já lhe disseram também que não existe remédio para ataques de lucidez.


[Agradeço do coração à Mateso , à Sombras do Fim do Dia, à hfm e à Nana, o mimo que me ofereceram. Podem ver o que foi e a quem passo este prémio no Vemos, ouvimos e lemos. ]

quarta-feira, outubro 08, 2008

somos o que somos




somos o que somos
na teimosia de fechar à luz dos dias
a porta da nossa casa
é a sombra que se espalha pelos cantos
que cremos iluminados por fugazes fogos-fátuos
e a vida foge
num eterno carrossel de tempo escasso
nada perdura, nada é
se falhamos o caminho para a raiz das coisas
e das gentes
que nos tocam, nos olham sem ver
somos o que somos
sabendo que o tempo corre lesto
e talvez o amanhã já não permita
de outro modo ser



[Para vos desejar bom fim de semana, está no Vemos, ouvimos e lemos o meu olhar sobre o Algarve que não é só praia. Convido-vos a dar um saltinho até lá.]

domingo, outubro 05, 2008

Há três anos e talvez hoje...




Sol, sempre. Sol quase impiedoso para a terra que aguarda, ansiosa, que a água a salve da sua condição desértica. Sol que, no entanto, nos acaricia em cada dia, fazendo-nos desejar que fique.
O sol leva-me para aquela praia, a mesma, a que acumula, como tesouros, recordações de muitos anos. Na esplanada, o aroma do café mistura-se com aquele agridoce cheiro da maresia. O leve ruído do mar e o calor suave que envolve o corpo distraem-me da leitura programada. Ali, as palavras do livro valem menos que o momento da vida. Poder-se-á dizer que a felicidade simples é isto, uma manhã de sol numa esplanada à beira mar. E as recordações que me trazem o saber de momentos futuros, perante aquele mar que me reconhece. Sinto-me próxima daquele “sempre” que poderá ser finito, tão finito como a linha do horizonte, da qual não consigo avistar o termo.

5 de Outubro de 2005 - memórias do último dia de "Verão"

quinta-feira, outubro 02, 2008

O caminho da água



Em cascata
em remoinho
em rápidos de queda livre
a água revolve e arrasta
o leito outrora suave.
Talvez corra, talvez pare
talvez encontre morada
onde repouse e se deite.
Talvez de doces amantes
reflicta dores e sorrisos.
Talvez de mágoas recentes
engrosse o caudal de lágrimas.

Talvez corra em remoinho
Talvez acolha sorrisos
Talvez chore com os amantes
Talvez corra
Talvez pare.


Março 2005



[A partir de hoje, está reactivado o Vemos, ouvimos e lemos, agora com comentários abertos]

sexta-feira, setembro 26, 2008

A casa do jardim




Ali estava, frente à entrada. Procurava na memória o tempo em que vivia na casa do jardim. Davam-lhe o nome as flores e a hera que entrevia sempre que a mãe lhe abria a janela do quarto. Para deixar entrar o sol, dizia, mesmo quando lá fora a manhã era cinza. A mãe tinha olhos verdes. Lembrava-se desses olhos de esperança da sua infância. Quando pensava nisso, parecia-lhe que a cor dos olhos dela mudara, à medida que a vida passava. A última lembrança trazia-lhe a cor cinzenta, baça. Depois, era a ausência. O silêncio. Ninguém lhe disse o que tinha acontecido. Ninguém mais lhe abriu a janela do quarto na casa do jardim. Pouco a pouco, lembrava-se de perceber o abandono que em tudo se reflectia. Ainda conseguia entrever os sinais da negligência e a tristeza que das pessoas passava para as paredes da casa. Até que todos a abandonaram de vez. Todos partiram. Ela seguiu a vida possível e foi esquecendo os dias felizes embalados pelos olhos verdes de esperança. Durante muitos anos, não quis passar pela casa do jardim. Muitos anos, os de ser mulher, os de criar filhos, os de envelhecer. Os de se sentir só, plena de lembranças. Agora olhava a ruína em que a casa se tinha tornado. Enfrentava-a, finalmente. Com a ternura de quem sabe que uma casa não é só paredes e conforto. É o amor dentro dela. O amor que faltara para manter o verde dos olhos da mãe.



[No PPP , o tema da semana passada foi "Ruína" e esta foi a minha foto. Depois deu-me para escrever à volta dela... Um bom fim de semana para todos! ]

quinta-feira, setembro 18, 2008

Branca aspereza





Branca aspereza, a dos longos campos de sal. Dentro da luz agressora, vislumbram-se lentos caminhos em que o branco se desdobra em cambiantes de cor. Filas de aves iguais alinhadas, sonolentas, extáticas sob o sol. Por vezes, por um som inusitado, o voo desgarrado ou em bando.
Homens de corpo tisnado fazem o ofício de “lavrar” os campos de sal. A luz reflectida fere-lhes os olhos e curte-lhes a pele. Como se com o próprio sal a esfregassem. Criam montes brancos, cintilantes, que aguardam que outros homens os transportem. E o ciclo recomeça nas salinas onde ainda o sal não se adivinha. Lentamente, à superfície da água, separa-se uma fina película como gelo quebradiço. É cuidadosamente tratada, orgulho daqueles homens calejados. Chamam-lhe a flor do sal.

domingo, setembro 14, 2008

Suave Setembro




Suave Setembro que revelas a cor prata das semi madrugadas em que as aves do sapal iniciam o voo;
és brisa leve das manhãs no jogo de escondidas com o sol;
aqueces o corpo inquieto em tardes quentes de Verão ainda vivo;
trazes os primeiros arrepios agasalhados em casaquinhos leves com cheiro de Outono;
prendes o olhar em doces ocasos, desejos dourados dos dias por vir;
lanças o sonho em noites de silêncio que murmuram com o vento segredos das pedras e das plantas.

Suave Setembro, estação de equilíbrios novos. De calma transição.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Porque não ser...




Porque não ser gata
deitada em novelo no quente da lareira?
Passear pela beira de algum telhado.
Ser gata, tão mimada
no passar do pelo em peles desejosas
das carícias que ousa de forma esquiva.
Ser gata, de uma vida,
que sete seriam o tempo alongado,
tédio marcado para uma hora certa.


Ser gata e ter aberta, à força de querer,
a porta de saída para ser mulher.



[E, como uma gata, escapo-me outra vez. Não para o telhado mas para o resto das férias. Beijos e abraços a quem passar.]

sexta-feira, agosto 22, 2008

A dúvida



Tudo começou numa conversa com o vizinho do 4º esquerdo. Quando se encontravam no café, em frente à bica a escaldar, costumavam falar sobre os problemas da actualidade, sobretudo do país. Dependendo do humor do vizinho, um bocado variável, por vezes vinha à baila o futebol. O homem era adepto de um clube em maré de azar e ele compreendia que esse assunto fosse, frequentemente, votado ao ostracismo. Era assim o nosso herói. Compreensivo e amante da concórdia, o que chegava a ser confundido com falta de “espinha vertical”. Eu, que o conheci razoavelmente, sempre achei que o casulo em que parecia encolher-se era a sua protecção contra discussões e mal-entendidos. Era uma daquelas almas que estão sempre bem colocadas num movimento pacifista, entendido como aqueles que começam por praticar a paz.
A tal conversa de que ia falar, quando comecei a divagar, deu-se numa bela noite estrelada e transformou a vida do nosso homem num inferno. Acabavam de sair do café, discutindo o estado calamitoso do país, e depararam-se com um luar imenso que conseguia inundar de luz irreal todo o bairro. Até parecia um bairro bonito, pensou o meu amigo, perdendo o olhar num leve vapor de neblina que pairava no horizonte. E, virando-se para o vizinho, num rompante de que ainda hoje se arrepende:

“Sabe, precisávamos era de uma luz assim para conseguirmos gostar desta terra.”

O vizinho, homem culto mas de pés assentes no chão e pouco dado a divagações, olhou-o estupefacto:

“Homem, você é um nefelibata!”

O nosso herói engoliu em seco. Como responder? Como se responde quando não sabemos o que nos estão a chamar e, ainda por cima, detestamos discussões?

“Talvez, talvez. Até amanhã, vizinho”

Durante dias não dormiu e quase não teve apetite. Não sabia se tinha sido insultado e estava tão convencido que a palavra nem existia que não se lembrou de consultar o dicionário. Mas, quando me contou a sua enorme dúvida, fui com ele folhear o que encontrei mais à mão. E lá estava, entre outras coisas:

nefelibata

“indivíduo que, animado de um ideal, não atende aos factos da vida real, positiva”

Benditos sejam os dicionários! Este pôs um sorriso enorme no rosto torturado do meu amigo.



[Texto publicado no 5º jogo das 12 palavras, a saber: casulo, conversa, inferno, inundar, luar, movimento, nefelibata, ostracismo, país, vapor, variável, vertical. Beijos, abraços e bom fim de semana!]


segunda-feira, agosto 18, 2008

As noites do rio



De noite o rio não dorme. Na incerteza do caudal que o mar lhe permite, torna-se ruína de pedras e lodo ou braço de água bem pleno, a reflectir as luzes da cidade amada. A ponte, que dizem ter sido pisada por homens de tempos passados e outras glórias, é o ponto de paragem de quem olha, de quem ali encontra o pedaço de alma que só certos lugares nos devolvem. Entre a ponte e o rio existe um amor antigo, feito de aproximações e fugas. Por vezes ele quase a beija para logo a seguir se afastar, raso no fundo do leito. Nas renovações e desencantos de cada dia, perdura o amor daquele rio pela ponte que o completa.
A vida que fervilha na água também não pára nas horas em que o sol se esconde. Peixes movem-se em conjunto, dançando estranhas coreografias. Por vezes saltam fora de água, reflexo prateado que a lua acentua. Volteiam, aproximando-se do local onde o homem lhes costuma dar pão. Que razão leva um empregado de café, perdido entre gente diferente daquela com quem foi criado, a ser amigo dos peixes do rio? São estranhos os afectos que a vida nos põe no caminho.
Na maré vazia, quando a água é escassa e o leito aparece, impudico, os homens escavam na lama, à procura do que lhes dará o sustento do dia seguinte. Enquanto a maré permitir.
No cais, onde a água já está mais perto do seu destino, ecoam os sons da azáfama dos homens nos barcos que ainda não saíram. Todos preparam o dia que se segue, sem que a beleza da noite os faça parar. Só o rio se estende, preguiçoso, namorando agora a lua e a cidade. Quem olha, deixa que a fascinação domine as horas da noite.

quarta-feira, agosto 06, 2008

talvez




talvez a água tenha escorrido
pelo teu corpo
e falado da loucura
das minhas mãos de cal.
quem sabe no cotovelo do rio
viste emergir do lodo
os meus braços raízes
estendidos em sobressalto
como rosácea de oferenda
a algum deus implacável.
talvez a água te tenha dito
do vasculhar na memória de ti
vendaval sem método ou limite
no leito onde corre a minha vida.


[Onde nos levam as palavras... Este foi o texto publicado a 24 de Junho no 4º Jogo das 12 Palavras que eram: água, cal, corpo, cotovelo, emergir, lodo, loucura, método, raízes, rosácea, sobressalto, vasculhar. Boas férias, fim de semana prolongado, o que quer que seja! Voltarei um dia destes.]

sexta-feira, agosto 01, 2008

Alentejo



Na planície, nos montes, nas terras, na brisa quente que nos envolve.

Bom fim de semana a todos. Um beijo.

sexta-feira, julho 25, 2008

A morte da infância




Lembrava-se daquela manhã marcada na lonjura da infância. Desejava afastar a recordação mas sabia que voltaria, recorrente como a sensação de vulnerabilidade que lhe deixava.
Ainda sentia o pisar suave da tapeçaria da sala dos avós. Parecia abafar a vida, afastar a possibilidade de um grito. Um grito, sequer. Sentia a morte rondar por ali. Não era a morte a ausência da vida? Tão criança era, e já lhe sentia o arrepio. Mas naquela manhã era pior. Quis correr para o quarto do avô. Homem rude, nunca lhe tinha demonstrado grande afecto, mas nem por isso deixava de ser o seu melhor conselheiro. Uma espécie de exponente da sua formação, alguém que lhe abria as portas do mundo dos adultos, confuso e traumático. Ou talvez apenas causador de pena. Dava-lhe segurança avistar a silhueta já curvada, em contra-luz na janela do quarto.
Não era assim naquela manhã de orvalho gelado. Um nó na garganta não o deixava respirar, como se ali fosse ficar em permanente obstrução. Entendeu, sem que ninguém lhe dissesse, que o vulto do avô seria, daí em diante, apenas uma lembrança. E o seu choro silencioso ecoou como o grito que nunca lhe tinham permitido dar, naquela sala.



[Este foi o meu texto para o 3º Jogo das 12 Palavras. As palavras escolhidas foram: afastar, conselheiro, criança, exponente, manhã, morte, obstrução, orvalho, pena, silhueta, tapeçaria, vulnerabilidade. Bom fim de semana para todos e dêem uns minutos de atenção ao que está anunciado ali na barra lateral, fruto do sonho do grupo que tem dado vida a este desafio... ]

sexta-feira, julho 18, 2008

História de uma foto



Era em Paris. É fundamental clarificar. Não há nisto qualquer snobismo. Quem alguma vez mergulhou a sério naquela cidade sabe o que quero dizer. A minha segunda cidade, apenas porque o que me liga a Lisboa tem raízes profundas de vida. Paris é um encanto fundado em vários encontros mas que, na verdade, são apenas encontros. Não há o tempo da desilusão.
Mas era assim em Paris, num Abril cheio de sol, quando aquela luz sobre o Sena já se mostrava aos olhos de milhares de turistas. Naquele dia tínhamos decidido subir a Montmartre. Celebrava-se um aniversário de quem ali ia pela segunda vez, sendo que, na verdade, era a primeira com um olhar adulto. E o que podia ser mais típico que Montmartre? Foi difícil chegar lá acima. O velhinho funicular não funcionava e, chegados a Abbesses, lá fomos, parte a pé, parte de autocarro, até ao cimo da colina. Os olhos sempre vagueando pelas fachadas dos prédios, as lojas de tudo o que se pode imaginar, parecendo algumas ter parado no tempo. O Sacré-Coeur era indiferente à multidão de turistas que se acumulava para fotografar e ver aquela vista de Paris. Aquela… porque é única. Paris tem muitos locais onde pode ser olhado a perder de vista. Aquela talvez não seja a mais abrangente mas é, na verdade, única. Ou talvez o local seja único. É algo que não se esquece, olhar Paris sentado nos degraus da basílica.
Perdemo-nos por ali até o sol baixar. Por aquela altura, já estava decidido jantar na Place du Tertre. Na verdade, a praça tinha tanta gente que era quase impossível “apanhar” a atmosfera que por lá paira em épocas mais sossegadas. Olhar os quadros, olhar os aspirantes a artistas. Por muito adulterado e adaptado ao turismo que o local esteja, restam ainda alguns “genuínos” artistas de rua que ali trabalham ou apenas tentam vender a sua obra. Mas cuidado que a caça ao turista está aberta, por ali… Não sei se aquele que captei é um dos genuínos ou não. Pareceu-me tentar reviver Gauguin, no seu tempo de influência do Taiti. Não resisti a capturar a cena, de tal maneira respirava o “ar de outro tempo”. E o dia acabou com um jantar a não esquecer na Mére Catherine, onde a palavra “bistrot” foi inventada. Querem saber como? Podem ver mais aqui. Quanto a mim, depois de escrever isto, fiquei com vontade de partir. Já.




[Esta quinta-feira no Palavra puxa palavra o tema era ARTE e esta foi a foto com que participei. Bom fim de semana, com arte e sol!]

domingo, julho 13, 2008

Água, águas...



[Uma boa semana para todos!]

sábado, julho 05, 2008

A primeira viagem




Pôs o pé no primeiro degrau da carruagem, olhando a plataforma na esperança de que alguém tivesse vindo despedir-se. Aquela era a sua primeira viagem para lá da cidadezinha de província onde vivia. Fantasiara que alguém chegaria à estação a correr com uma caixa de chocolate e flores nos braços. Como nos filmes. Mas quem viria? Na sua vida ignorada de empregada de uma pequena empresa, tinha um ou dois conhecidos a quem nem podia chamar amigos. E vivia só. Da família, tinha a ideia ténue da existência de uns longínquos parentes. Quem viria, na verdade?
Era a primeira licença que tirava, mais por não saber o que fazer do que por zelo no trabalho. Mas, num dia em que o sol brilhava e um sorriso desconhecido a tinha acariciado, decidira aventurar-se. Aqueles quinze dias ao pé do mar talvez a tirassem da sombra em que sempre tinha vivido.
Entrou na carruagem, abriu a janela e aspirou o aroma envolvente dum belo dia de Verão. À medida que o comboio ganhava velocidade na linha, algo lhe dizia que ia iniciar uma nova vida. Fechou os olhos e sonhou com águas cálidas e um desconhecido cujo rosto não tinha ainda contornos. Não era sempre assim nos filmes?




[Este é o texto do 2º Jogo das 12 palavras. Para este jogo, foram escolhidas as palavras: caixa, chocolate, degrau, envolvente, flores, licença, linha, sol, sombra, ténue, viagem, vida. Bom fim de semana!]

sábado, junho 28, 2008

Olhares sobre Oeiras





Tentando não olhar só o óbvio.Bom fim de semana!

terça-feira, junho 24, 2008

A Senhora do farol




Contavam, na povoação, que uma mulher vagueava, em noites de tempestade, entre o velho farol e o mar imenso. A sua silhueta destacava-se no horizonte, sempre que a luz azul iluminava a noite. Diziam que vivia longe, num distanciamento propositado da população daquela vila e carregava com ela uma dor amortecida pelo tempo, mas que lhe retirara o gosto de estar com os outros. Sempre só, naquele jeito de comungar sentimentos apenas com as águas que lhe escutavam as palavras. Quando se revolviam e batiam nas rochas com um ruído avassalador, só ela parecia fazer a fusão entre o mar e o céu. Encostada ao enorme rochedo erodido pela fúria dos elementos, dizia o povo que era a ponte entre as gentes daquela terra e alguma divindade vingadora e que só ela tinha o poder de acalmar a tempestade. Por isso a chamavam de Senhora do Farol e lhe espiavam os passos, sempre que no ar ecoava o ruído atemorizador que conheciam das memórias sem tempo certo.




[As palavras para o jogo eram: amortecida, avassalador, azul, céu, comungar, distanciamento, erodido, farol, fusão, imenso, mar, tempestade]

Uma espécie de regresso...

Não é exactamente um regresso. De qualquer forma, em fotos e textos que respondem a desafios que me estimulam, tenho andado por aí. Assim sendo, para quem ainda se lembrar e estiver interessado em seguir o que faço, deixo aqui os links em que me podem encontrar.

As fotos estão onde estiveram sempre. E a paixão pela fotografia vai crescendo

Vida de vidro no Flickr


Também podem encontrar fotos minhas e de muitos outros, às quintas feiras de cada semana, no

Palavra puxa palavra


E não consegui resistir ao jogo das 12 palavras, lançado pelo Eremita. Uma vez por mês, vários autores deixam, em prosa ou poesia, o seu olhar sobre 12 palavras. Acreditem que tem sido fascinante. E já vai no 4º jogo. Podem encontrar-nos em:

Eremitério

Mas, como já vamos no 4º jogo, pensei que seria interessante ir publicando aqui as minhas participações. Começo no primeiro, naturalmente. Os outros seguir-se-ão, com calma... Então, se o desejarem, sigam, por favor, para o post seguinte. Beijos e abraços a todos. É bom reencontrar-vos aqui.