domingo, dezembro 17, 2006

O Natal é...





O Natal está a chegar. Aquilo que pode parecer uma afirmação trivial ou uma constatação óbvia sem qualquer importância de maior, desperta em mim uma terrível lista de sentimentos contraditórios.

Supostamente, celebramos um nascimento humilde, de alguém cujo pensamento foi revolucionário precisamente por espalhar a palavra do amor, da compreensão, da tolerância, do perdão. Perdoe-me quem é crente que diga só isto, mas para mim isto é o suficiente para celebrar Cristo, homem. Mas, para tal celebração, enfeitamos casas e cidades com tudo o que lembra o luxo, mesmo que fingido: luzes feéricas, dourados, prateados. Os nossos rituais de celebração incluem tudo o que, na realidade, é profundamente acessório e nos distrai os sentidos do essencial : um nascimento humilde, uma doutrina que, tomada à letra, modificaria completamente a face do mundo.
Na verdade, não mudou. As desigualdades, as perseguições, as guerras, a crueldade continuaram a existir, tanto nas civilizações cristãs como nas outras. Claro que existe aquilo que as diversas igrejas cristãs nos ensinam sobre a salvação, etc. Não direi nada sobre isso porque é, afinal, matéria de fé. E a matéria de fé não se discute.

Existe também o Natal como festa tradicional da família. É uma outra vertente, onde a ideia de Cristo pode estar presente ou não. É o Natal aconchegante, o Natal dos reencontros e das reconciliações, o Natal das crianças, dos sabores que se agarram à nossa saudade para a vida inteira. Mas é também o Natal do consumismo desenfreado, do “comer até fartar”, de tanta coisa que nos distancia do tal Natal humilde… E é o Natal dos solitários, dos que não têm família ou faz de conta que não têm. É o ponto alto de todas as solidões e a época em que todas as perdas da nossa vida se fazem lembrar.

Depois de tudo isto, o Natal é também aquela “época de ser bonzinho”. António Gedeão fala disso no seu poema Dia de Natal:

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros. coitadinhos. nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.


Pois é… E se fossemos bonzinhos todo o ano? Mas o mais terrível é que essa onda de boa vontade nos agarra de tal forma que começamos a lembrar-nos dos que morrem de fome no mundo, dos que as guerras matam ou estropiam (sem trégua de Natal), dos maltratados, dos que sofrem toda a espécie de abusos… Desculpem lá! Não há pachorra para o Natal.


(Sem nenhuma contradição, para todos os que aqui passam, os meus votos de um Feliz Natal e um óptimo 2007, com tudo o que desejarem. Volto em Janeiro.)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

As barreiras da razão...





Hoje não me falem de dor
Levantei as barreiras da razão
Defini as palavras proibidas
Dor, não!
Digam do tempo, da chuva ou da bruma
Talvez do frio das noites
No conforto das casas aquecidas
Digam do mar
Que repousa em cachos de espuma
Diz-me tu, da vida
Não da tua nem da minha
Da dos desconhecidos que se cruzam
Na margem paralela do caminho
Conta histórias de outros tempos
De dias por conhecer
Enche-me de palavras os ouvidos
Das que despertam os sentidos
Sem limites nesta rota de ilusão
Hoje, dor não!



Foto by Lilya Corneli

domingo, dezembro 10, 2006

Existem os cavalos...





É certo que existem os cavalos
tranquilos no pasto
como se toda a liberdade fosse sua.
Serão as cercas apenas fios leves
teias, carícias sobre a pele nua?
Será que imaginam felicidade
no suave vegetar das suas vidas?
Não intentam fuga ou protesto
nem se agitam em vãs tentativas,
são a simples imagem da beleza
sopro do vento na margem esquecida.
Existem dentro da minha certeza,
feitos para o voo
presos na armadilha da vida.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O palácio




Certa noite, ele chegou com o rosto iluminado. Por onde teria andado? Já não fazia a si própria muitas perguntas, no cansaço daquela vida sem tecto. Pela rua se tinham encontrado e na rua viviam, se àquilo se podia chamar “viver”. Iam fazendo companhia um ao outro, tentando amenizar a dureza da fome, do frio, da incerteza do dia seguinte. Ela já não pedia mais nada, perdida toda a esperança que tinha tido, nalgum existir longínquo, vaga lembrança que escorraçava por tornar o “agora” ainda mais difícil.
Mas, naquela noite, ele sorria e até quis fazer amor. Há quanto tempo? No início, escondiam-se nos prédios em ruínas, nos vãos de escada desertos. Agora… o desejo tinha morrido nela e, pouco a pouco, ele desinteressara-se. Teria outras por aí… já isso não lhe importava.
Naquela noite, acumulou pedacinhos de felicidade, farrapos dos quais também já tinha desistido. Quis então saber porquê.

- Queres viver num palácio?

Riu-se. Aquele homem não tinha emenda, vivia perdido em sonhos. Mas ele pegou-lhe na mão e levou-a por um estranho caminho que, na noite de luar, lhe dava a impressão de abandonar o mundo real. Ouviu a voz dele.

- Chegámos. Vê!

O palácio ali estava. Abandonado, quase uma ruína. Mas belo. Podia imaginar jardins onde agora crescia a erva. Nas escadarias ladeadas de azulejos, viu-se princesa, como nos sonhos de outrora.
Ninguém por ali andava. Os companheiros da rua ali não entravam. Rindo e dançando ao som de uma orquestra imaginária, ela disse que sim. Viveriam ali. Enquanto fosse possível. Enquanto houvesse espaço para o sonho.

domingo, dezembro 03, 2006

Escritos da chuva (III)





Chove

Eu sei que chove
Lá fora no asfalto não há som de passos
É noite
Comigo caminham os inquietos
Os que sonham de olhos bem despertos
Os que esperam algo que não chega
Mítica mistura de desejo e esperança
Comigo vagueiam os que dizem loucos
Os muito lúcidos de olhos abertos
Os que não sabem se estão longe ou perto
Todos os que escutam na noite escura
A chuva a bater no asfalto deserto.


Foto by jaQb jacher