terça-feira, dezembro 20, 2011

Natal antigo




Estamos a três dias do Natal e dou comigo a lembrar os tempos em que os presépios tinham musgo apanhado pelos campos, pratas ou vidros que imitavam água, toscas figuras de barro pintado. E tudo fazia sentido, numa composição virada para uma criança recém-nascida, esperança e paz deste mundo.
Não havia Pai Natal nem árvore. Todos os preparativos eram feitos na noite de 24. Grandes alguidares onde se batiam os sonhos e, no lume, a canja da galinha criada no quintal. Bem antes de deitar a chaminé era limpa, enfeitada e os sapatos brilhantes ficavam ali à espera. Na verdade, a espera era nossa, das crianças. O que estaria lá de manhã? Doces, um brinquedo talvez? Um livro, sempre, a partir da idade de os saber compreender.
Porque me lembrei deste Natal frio do menino Jesus, sem grandes enfeites, sem grandes brilhos, feito com os parcos recursos disponíveis? Provavelmente só para me esquecer das angústias do Natal deste ano. Que vou pedir ao Pai Natal ou ao menino Jesus ou apenas à estrela que brilhe no céu nessa noite? Não há milagre que me faça sair da realidade das perdas, das dores acumuladas, das angústias de um ano sem esperança, sabendo que o próximo será talvez pior. Talvez por isso tenho que voltar à simplicidade da infância, aquela época em que o Natal era humilde como sempre devia ter sido. A festa do nascimento de uma criança numa manjedoura. Só isso. E a paz tranquila desses tempos. Será esse o meu pedido de Natal, o meu voto de Ano Novo. A possibilidade de viver em paz comigo e com os outros. Será possível pedir algo mais este ano?
[Desejo a quem ainda aqui passa um Bom Natal e que 2012 passe rápido e indolor.]

sexta-feira, outubro 28, 2011

Suave rio




Hoje precisava de inspiração e as palavras fogem-me escorregadias. Nada fica no ecran, nada do que queria dizer e deixar marcado. Exactamente hoje. Deixo apenas aquilo que o cansaço não mata, o que está tão dentro de mim que escorre dos dedos, mesmo involuntariamente. Hoje é apenas o dia de deixar transbordar o suave rio da ternura.

domingo, outubro 23, 2011

Ciclo infinito



Voltou a chuva. Anotou o acontecimento no pequeno caderno. Aquele hábito de ligar os ritmos da natureza aos seus, pareceria talvez estranho. Mas ninguém, a não ser ela, lia o caderno. E também nunca lhe causara preocupação que a considerassem estranha. A chuva aninhava-a em si própria numa semi-apatia. Deixando que em si chovesse também. Sinal de renovação, diriam os antigos. Aqueles que iam desaparecendo da sua vida. Em nome deles, deixou que a chuva interior fizesse o seu trabalho. Tudo renasceria na natureza. Como sempre, naquele ciclo infinito que é o tempo. Também nela a vida seguiria o seu caminho, passando outra vez dos dias de sol àqueles em que parece chover no mundo inteiro. Enroscou-se um pouco mais, escutando a água que batia nos vidros. Dentro de si, acarinhou a semente da alegria.
No caderno, ficou só uma nota : “Hoje voltou a chover. Espero que as flores me nasçam nos olhos, lá para a Primavera. Segundo o calendário, já não falta muito.”

sábado, outubro 01, 2011

silêncio



o silêncio
um pouco de nada no dia que passa
uma aragem gelada no calor da tarde
um frio suor nas noites de insónia.
nada existe
para lá da certeza exacta da distância
que em nós interiormente se afirma
no amargo sopro do desencanto.
nem a espera
a vida não tem margem que a pare
e as horas arrastam-se e correm
num mesmo tempo simultâneo.
só a esperança
que entra pelas frestas do desejo
de viver.

foto: Dionísio Leitão

publicado em Mulher dos 50 aos 60 em Agosto 2005

quinta-feira, setembro 29, 2011

Outono sem chuva



É Outono. E ainda não chove. Tenho esta imitação de folha em branco e os dedos tropeçam no teclado. De quem falo? Como querias ser lembrado? O dourado dos caracóis da criança, as impertinências do adolescente espigado, o homem, o pai, o artista... Haverá muitas coisas de ti que não conheci. Mas, agora que aqui não estás e já não te posso perguntar, não consigo que os meus dedos encontrem as palavras que te descrevem. Só inquietação. Minha, tua. Levaste contigo a paz que se encontra nas memórias de infância, nos risos antigos que ficam a ecoar nas casas. Ficaram as perguntas, os silêncios, os vazios que não serão preenchidos.

Inquietação. Estás em frente à janela, tenho a certeza. É Outono. E a chuva ainda não bateu nos vidros.

sexta-feira, setembro 23, 2011

Entre o sonho e a realidade



Sentado no carro olho as luzes da cidade espalhadas pelas gotas de água que escorrem nos vidros.
Ligo o aquecimento, procuro uma estação de rádio. Música melancólica. Oceano Pacífico. Apropriado.
A noite vai ser longa e o dia foi cansativo.
"As noites longas do Oceano Pacífico".Dizem.
A música, o ruído de fundo da chuva e o cansaço levam-me para um espaço entre o sonho e a realidade.
Nele quero estar.
É nele que tu existes. Entre o sonho e a realidade.
Desde sempre foi aí que te encontrei.
Nele crescemos juntos, brincámos, nele nos amamos, nele vivemos como criaturas de luz que somos.
Sabemos que o tempo é curto. Apenas existe naqueles minutos entre a realidade e o sonho.
Sei que estás, como eu, nos outros espaços.
Mas neles não nos (re)conhecemos.
E ansiamos esse pequeno espaço de tempo em que, de facto, estamos vivos.
O tempo começa a esgotar-se. Luto contra o sono, luto contra o despertar.
Não quero a separação.
O barulho de pancadas fortes e um coro de buzinas sobressaltam-me:
Acorde, gritam-me de fora do carro, o sinal está verde, porra !
Você está a empatar o trânsito!

foto e texto de Dionísio Leitão


[adeus, meu irmão. a tua viagem na realidade terminou. resta agora a que sonhaste e em que esperamos encontrar-nos todos, um dia. ]


sábado, setembro 17, 2011

Endless Night


"Some are born to Sweet Delight, Others are born to Endless Night"

William Blake

quarta-feira, setembro 07, 2011

Bagagem

foto: luggage by Dariusz Klimczak



Nada existe para além de mim
Na angústia ambivalente das tardes
O pôr do sol é só cenário antigo
Um pó dourado sobre a realidade
Desvio os olhos do longo prado azul
Que a verdade revela manchado de lama
Não quero nada para além de mim
Prenhe que sou de perdidas ilusões
Só o terreno arrepio das manhãs
E o vento inquieto em cada fim de tarde

quinta-feira, julho 28, 2011

O ombro da noite




by Artur Gusakov


Encosto a cabeça no ombro da noite
Exposta ao consolo cálido da brisa
Ficaram colados na tarde escaldante
Os cantos estridentes das cigarras
Por dentro da paz azul do crepúsculo
Observo a luta da harmonia perfeita
Com o espelho convexo da realidade

domingo, julho 17, 2011

quando a noite

quando a noite alastra pelos montes
largo a alma nas fragas sobre o rio
bebo nas pedras as gotas que restam
da última tempestade

e devagar regresso aos campos rasos
onde nem o vento agita a terra
e a perene imobilidade do ar
é bálsamo inquieto

resta a dúvida do que me preenche
a noite, o rio e o cheiro da tempestade
ou a doce melancolia onde o vento se aquieta

sábado, julho 02, 2011

a sombra


vejo-me na sombra das varandas
que se esconde do sol do fim de tarde
a sombra regular na parede verde
iludindo o avançar do crepúsculo
que breve se funde no negro da noite
vejo-me no declinar das horas de luz
no lado de lá de um perverso espelho
onde olho os meandros de mim
ali na sombra sobre a parede verde.

quinta-feira, junho 30, 2011

uma cinza trémula


é só um nome
já não é vida
dor de pele rasgada
um nome absorto
esquecido pelos cantos
escuros da memória
é só um nome
mais nada
uma pequena brecha
de dor intermitente
é só um nome
mas vida não
uma cinza trémula
de chamas antigas
e agora um nome
escondido na estrada
escura linha de outros dias
um nome, mais nada...

sábado, junho 04, 2011

Reflexão com foto e bandeira


by Jacob Lopes


Dizer amor a este país
por querer.
Sem caravelas
ou talvez perseguindo-as
na dimensão do sonho.
Dar a mão, o braço, a alma
levantar o corpo do negrume
e moldar um futuro
possível.
Dizer saudade em positivo
de ideias
de ideais realizados
sonhos concretos
sonhados no dia a dia.
Pensar em mim este país
olhar de frente
a neblina de pesadelos
que disfarçamos com risos
de ecos amargos.
Evocar o sol e o vento
de vontades em comunhão
e seguir, talvez.

Dizer amor a este país
ou desistir.


[Escrevi isto em 2005. Hoje não diria nada diferente.]

segunda-feira, março 21, 2011

Pelo poema


by Sam Taylor

Pelo poema fui onda deslizante
folha de árvore nos braços do vento
barco à toa nas margens do rio
Pelo poema vivi sonhos improváveis
vi-me só em mil espelhos quebrados
fui idêntica a mim e inventei-me
No poema me perdi e me encontrei
e na pele das palavras me envolvi
cobrindo a nudez que queria expor
ilusão de sentidos meros enganos
sobre as almas que de mim nasceram
nas eternas asas etéreas do poema.



[Hoje, Dia Mundial da Poesia]

terça-feira, março 08, 2011

O que são as mulheres?

Porque é Dia Internacional da Mulher e um amigo me enviou este presente, partilho-o com todas e todos, numa homenagem às mulheres e aos homens que sabem o que elas são.









"Não tenho filhos homens, mas se os tivesse, e um deles me perguntasse,
perante as coisas da vida, o que é uma mulher, dir-lhe-ia,
mesmo sabendo que não sei coisa nenhuma, que as mulheres:


São seres feitos de estrelas, de vento, de sol e lua,
moldados por tempestades e pelo sopro divino.

São anjos que nos protegem e demónios que nos tentam,
deixando-nos dominados se as provocamos sem querer.

São o corpo que tomamos quando elas querem assim e
a alma que não logramos aprisionar mesmo querendo.
São as mãos que acarinham e nos deixam sem acção,
ou se a acção nos consentem nos deixam enlouquecidos.

São nosso porto de abrigo onde as amarras nos prendem
depois de termos passado pelo bramido do mar.
São o repouso que queremos depois das guerras que vamos
provocando sem razão.

São guardiãs do passado, as obreiras do presente, as sibilas do futuro
já que tudo lhes pertence, mesmo que a gente não queira.
São o melhor de nós mesmos, mesmo que a gente não saiba
ou não queira admitir.

São as mães que nos geraram e nos protegem e amam
mesmo quando a gente estraga o amor que nos dedicam.
São as mães dos nossos filhos, filhas, irmãs e amigas.
São as nossas companheiras nos caminhos que trilhamos
de que sentimos a falta se abalam do nosso lado
e nos deixam sem a força que sustenta os nossos sonhos.

As mulheres são afinal a outra face de nós
completando o padrão criado pela natureza.

Podem ser tudo o que queres, o que sonhas e desejas,
um bocadinho de inferno ou um pedaço de céu.
Podem ser tudo na vida ou não ser coisa nenhuma,
como tu ou como eu."


Luis Filipe Duarte

domingo, março 06, 2011

Domingo sem sinos

by mar de sonhos


Naquele domingo acordou com a memória dos sinos das manhãs antigas. Já não tocavam, escondidos algures entre camadas de vida vivida que se acumulavam. Sabia que isso não era sinal de que os sons, os cheiros, as cores, que faziam dos dias de outrora hinos à alegria de viver, já não existiam. Já não os sentia e o que se deixa de sentir raramente volta. Olhou a janela aberta para o mundo lá fora. O renascer da terra já estava no início. Era um pulsar de vida que entrava pela janela. Sem sinos, sem aromas inebriantes. Apenas a afirmação de que tudo se renovava, tudo se modificava, mas valia a pena ser experimentado. A certeza de que a vida era aquilo mesmo, um dia de cada vez, ainda que as manhãs não se enchessem do repicar dos sinos, nem as noites fossem cenários de fogo de artifício. Respirou o ar já meio doce, anúncio do aproximar da primavera. Uma dor subtil insinuou-se, lá muito no fundo dos pensamentos que se distendiam. Embalou-a naquela reflexão lúcida que se apoderava de si e soube que estava próximo o dia de renunciar. Talvez não fosse no dia nem no mês seguinte. Um dia de cada vez... Quando chegasse a hora, teria a mesma certeza que tinha agora, do eterno silêncio dos sinos.

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

para lá do Inverno

by Eskil Olsen


porque vês o inverno
na janela espelho em que te olhas
o mundo encolhe nas paredes frias
e a espada de gelo te penetra o peito
julgas que o sol é privilégio de outros
que descuidados ainda não passaram
as brancas montanhas para lá do tempo

mas o sol reside na ponta dos dedos
e arde intenso no toque da pele
afaga-te os olhos no sopro do vento
para lá do espelho real em que te vês
o sol é o eterno desejo de renascer.

domingo, janeiro 30, 2011

Nevoeiro

Do dia em que o nevoeiro caiu sobre aquela terra, nada constava nos anais da história nem na memória dos homens. Se uns diziam que tinha acontecido de repente, outros garantiam ser um acontecimento previsível. É sabido que quando o nevoeiro cobre o caminho dos homens, cada um vê coisas diferentes. Uns tacteavam a escuridão, num caminhar penoso sem qualquer rumo. Outros sonhavam melancolicamente e imaginavam estranhas formas feitas de bruma. Todos sabiam que havia quem quisesse cortar o nevoeiro à procura do sol. As crianças escutavam lendas sobre esse disco dourado e quente e campos cobertos de flores vermelhas. Os mais velhos falavam de alegria e felicidade, palavras antigas que os dicionários tinham esquecido. Na sombra das histórias contadas à noite, quando o nevoeiro se tornava mais insuportável, germinava pouco a pouco uma outra palavra já há muito esquecida: esperança. Também sabia a geração mais antiga que, quando a esperança se impõe no coração dos homens, é difícil impedir que eles lutem para a concretizar. Foi assim, de história em história, de lenda em lenda, que alguns iniciaram a caminhada para procurar o sol. Nos olhos dos outros, dos que não se aventuraram, ficou a espera. Os forasteiros que por ali passavam diziam que aquele era um povo parado numa esquina do tempo, vivendo o dia a dia sem ânimo, esperando, esperando... aquilo que ninguém sabia exactamente definir.