sexta-feira, setembro 29, 2006

Este sentir azul...





Que caia o silêncio em que cabe tudo o que não é dito. Palavras são meros sons, pálidos reflexos de sentimentos. Desnecessárias, tantas vezes.
Que caia o silêncio em que dois seres se projectam um no outro. As palavras não fazem a proximidade.
Que caia o silêncio porque é essa ausência de som, esse sentir azul que permanece nas horas em que muitos sons se fazem ouvir.
Que caia o silêncio… assim!





Foto by Alexander Bogdanov

terça-feira, setembro 26, 2006

O voo





Lembro-me de um azul infinito que nos acolhia o voo. Rotas cruzadas por um vento que nos aproximou, voámos naquela luz que brilhava sem cegar. Sabíamos da terra onde pousávamos, mas o voo levava-nos a limites em que pensávamos ser um, rumando a um destino único.
Lembro-me, sim. Daquele planar suave sob o calor do sol, da euforia frenética de alguns dias, até de alguns desvios do caminho e de quedas em voo picado. Lembro-me de tudo o que nos aproximou e afastou.
Por vezes, as rotas desviaram-se, da mesma forma como se tinham cruzado. Talvez sejam assim todos os voos. Reconhecemo-nos novamente como seres distintos, por momentos as almas deixam de tocar-se lá em cima, no azul que parece tornar-se finito, muito finito.
Talvez a luz já não seja tão brilhante. Não tenho nem terei nunca certezas. Talvez os ventos nem sempre soprem na direcção desejada. Mas o voo que fazemos juntos continua a ser um encontro de almas, nas rotas sem limite.





Foto by Jozef Zidarov

domingo, setembro 24, 2006

Dia único





Sei da distância
que me enche os olhos de bruma
e dos dias expectantes
lançados no tempo como as margens dum lago.
Sei da esperança
em cada regresso à casa do meu corpo
e da ternura
que tudo invade qual enchente de maré.
Sei de mim em ti
porque sabê-lo é o espelho da tua presença em mim
e do que em ti grita
no silêncio interminável das noites brancas.

Só não quero saber do amanhã
dos dias que correm na orla do tempo.
Seja hoje o dia único
se no meu corpo se fechar o arco dos teus braços!



Foto by M L

quinta-feira, setembro 21, 2006

Olhando a encruzilhada






Conhecia aquela mulher. Parada, indecisa, numa encruzilhada da vida. De alguma forma, sabia que já ali estivera. Talvez aquela mulher fosse só a projecção de si própria. No passado ou num futuro próximo?
Naquele momento, não conseguia perceber o final do caminho que percorria. Talvez fosse apenas um daqueles caminhos que não levam a lado nenhum mas entroncam noutros e esses noutros… Simplesmente seguia-o porque parte do que lhe coloria a vida estava lá e a cor era essencial. Sempre fizera parte dos seus pesadelos viver a preto e branco ou, ainda pior, a cinza.
Olhou de longe a mulher na encruzilhada. Era inevitável que um dia lá voltasse. Provavelmente escolheria a travessia do deserto, no fim do qual nascem os caminhos coloridos. Mas para conquistar a cor, é necessário completar a travessia. Quantas vezes teria a capacidade de o fazer?





Foto by Marcin Klepacki

segunda-feira, setembro 18, 2006

Só um laço de ternura





Amor deveria ser
Sem limite, sem horário
Sem ponto para marcar
Um sentimento arbitrário
Sem regras a obedecer
Sem motivos p’ra chorar
Nem nós para (nos) prender

Amor deveria ser
Só um laço de ternura
Deslizando com prazer
Pela curva da cintura

Amor deveria ser…
Mas não é. O que fazer?



[arbitrário: que provém de arbítrio; que não obedece às regras
Dicionário Primberam da Língua Portuguesa ]



Foto by Andreas Allgeyer

sábado, setembro 16, 2006

O vestido azul





Demorou a preparar-se. Banho, cremes, maquilhagem. Ia olhando o vestido azul pousado na cama. Não resistira. Chamava por ela na montra da loja. Olhou-o de todos os ângulos, pegou-lhe com cuidado e vestiu-o. Perfeito no seu corpo. Como se uma costureira o tivesse feito por medida.
Olhou-se no espelho. Gastara quase todo o dinheiro que tinha mas estava pronta para a sua grande noite. Sentou-se e esperou. Ainda não era a hora certa. Esperou mais e mais. O relógio, por fim, marcou a meia-noite.
Pôs a música a tocar, foi buscar o champanhe e dançou, dançou, dançou. Abriu prendas que comprara e fez a festa até adormecer, linda no seu vestido azul.
Estava só naquele quarto minúsculo, numa cidade estranha. Tinha vinte anos.





Foto by Beliz Kocak

quarta-feira, setembro 13, 2006

Malmequer no escuro...





Mal me quer, bem me quer…
Na escuridão quem vai saber?
Pétala sim, pétala não…
Desfolho-as na minha mão
E dê a sorte o que der
Só vou ficar intrigada
Será muito, pouco ou nada?



Foto by Jean Sébastien Monzani

segunda-feira, setembro 11, 2006

Dádiva de mim





“Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. Vi que era pão que procuravam ou que não era pão que procuravam, Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro, mar, criança, rapariga, mulher. A cada palavra minha eu ia-me esvaziando. Era a vida, a minha vida que se me ia. (…). Vieram mais, muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, deus. E caí redondo no chão.”

Ruy Belo , excerto de “Serviço de abastecimento da palavra ao país”




Todos os dias espalhamos palavras à nossa volta. De circunstância. De amizade. De zanga. De amor. De paixão.
Teremos consciência da força que uma palavra pode ter para alguém que a quer ouvir? O sentido do que falamos ou escrevemos está sempre sujeito a interpretações diversas. Mesmo para os amigos mais próximos.
As palavras, quando as dizemos, são um som a que se convencionou dar significado. Quando as escrevemos são símbolos, por vezes totalmente inúteis, por aí deixados, como flores sem cor nem perfume. Há dias em que isso não me perturba. Outros há, em que quero que todas as minhas palavras façam sentido. Que ganhem cor, aroma, gosto. Que sejam dádivas de mim para quem as quiser receber.





Foto by Mareks Logins

sexta-feira, setembro 08, 2006

Sombras em céu claro






Vieste até mim no teu passo furtivo
Nos olhos tinhas a dúvida da distância
Sombras como nuvens em céu claro.
Como posso dizer que te conheço
Se só a ti conheço?
Como se sempre tivesse esperado
Os teus passos pisando o mesmo trilho.
Caçadores e presas somos
E o nosso tempo é breve.
Vê que o sol já começa a declinar
Apanha nas mãos os raios do poente
Afasta as sombras.
Habito o mesmo lugar da tua alma
E no trilho de sempre espero o teu corpo.



Foto by Ennio

quarta-feira, setembro 06, 2006

A outra metade





Metade frágil, metade prepotente. Metade competente, metade insegura. Metade segura, metade hesitante. Metade divertida, metade melancólica. Metade sol, metade lua. Metade verso, metade reverso.
Metade do rosto. Metade da alma.
A outra metade perdia-se no labirinto de si própria, nos esconderijos que cavava dentro de si, como grutas concêntricas nas quais ninguém penetrava. Nem ela.





Foto by Sandrine Huet

segunda-feira, setembro 04, 2006

A brisa do Outono...





"Nos teus olhos translúcidos
ainda passam sombras
que a ternura afasta lentamente
(…)
Não sentes o mar, as neblinas
o castanho doirado das folhas
com laivos de agonia?
Vem, é outono"


José Carlos Teixeira, in O Voo Interdito para o Sol



O sol arde mas sinto algures a brisa do Outono. Talvez porque o esplendor das cores já começa a transformar a paisagem em tela de algum pintor desconhecido. Talvez porque os dias já perdem a luz mais cedo, dando ao crepúsculo toda a magia que a crua claridade do Verão lhe nega. Talvez porque os ciclos da vida recomeçam, após o breve intervalo que a ilusão das férias carrega consigo.
Nem sempre foi Outono. Mesmo quando as folhas castanho-avermelhadas tingiam as árvores para depois amarelarem e acabarem pisadas no chão. Lembro-me que não era Outono, apesar do vermelho se ir ausentando dos poentes e da frescura da brisa nos arrepiar os braços. Era um tempo suave, um tempo mágico. Não era a antecâmara do Inverno.
Hoje sei que em breve será Outono, o Inverno chegará a seu tempo. A natureza prepara-se para, também ela, iniciar o seu ciclo de renovação. Os dias ardentes darão lugar à frescura pela qual o corpo já anseia, num tempo em que os nossos olhos se prendem na doçura dos ocasos, antes que o vento se torne agreste e nos faça recolher no nosso casulo. Invoco o sol para que o pó doirado da magia se espalhe no ar e faça durar os dias ternos que nos afagam o corpo.





Foto by Marcin Klepacki

sexta-feira, setembro 01, 2006

My beautiful butterfly...




Minha linda borboleta
beleza ressuscitada
de múltiplas cores aladas.
Cavalga o dorso do vento
à hora em que o sol declina
lança as asas no horizonte
naquele momento encantado
em que o silêncio domina.
Sustenta em ti a minh’alma
que se expande sem limite.
Breve é o instante do voo
mas percorre o infinito.



Foto by Zosia Zija