quarta-feira, agosto 27, 2008

Porque não ser...




Porque não ser gata
deitada em novelo no quente da lareira?
Passear pela beira de algum telhado.
Ser gata, tão mimada
no passar do pelo em peles desejosas
das carícias que ousa de forma esquiva.
Ser gata, de uma vida,
que sete seriam o tempo alongado,
tédio marcado para uma hora certa.


Ser gata e ter aberta, à força de querer,
a porta de saída para ser mulher.



[E, como uma gata, escapo-me outra vez. Não para o telhado mas para o resto das férias. Beijos e abraços a quem passar.]

sexta-feira, agosto 22, 2008

A dúvida



Tudo começou numa conversa com o vizinho do 4º esquerdo. Quando se encontravam no café, em frente à bica a escaldar, costumavam falar sobre os problemas da actualidade, sobretudo do país. Dependendo do humor do vizinho, um bocado variável, por vezes vinha à baila o futebol. O homem era adepto de um clube em maré de azar e ele compreendia que esse assunto fosse, frequentemente, votado ao ostracismo. Era assim o nosso herói. Compreensivo e amante da concórdia, o que chegava a ser confundido com falta de “espinha vertical”. Eu, que o conheci razoavelmente, sempre achei que o casulo em que parecia encolher-se era a sua protecção contra discussões e mal-entendidos. Era uma daquelas almas que estão sempre bem colocadas num movimento pacifista, entendido como aqueles que começam por praticar a paz.
A tal conversa de que ia falar, quando comecei a divagar, deu-se numa bela noite estrelada e transformou a vida do nosso homem num inferno. Acabavam de sair do café, discutindo o estado calamitoso do país, e depararam-se com um luar imenso que conseguia inundar de luz irreal todo o bairro. Até parecia um bairro bonito, pensou o meu amigo, perdendo o olhar num leve vapor de neblina que pairava no horizonte. E, virando-se para o vizinho, num rompante de que ainda hoje se arrepende:

“Sabe, precisávamos era de uma luz assim para conseguirmos gostar desta terra.”

O vizinho, homem culto mas de pés assentes no chão e pouco dado a divagações, olhou-o estupefacto:

“Homem, você é um nefelibata!”

O nosso herói engoliu em seco. Como responder? Como se responde quando não sabemos o que nos estão a chamar e, ainda por cima, detestamos discussões?

“Talvez, talvez. Até amanhã, vizinho”

Durante dias não dormiu e quase não teve apetite. Não sabia se tinha sido insultado e estava tão convencido que a palavra nem existia que não se lembrou de consultar o dicionário. Mas, quando me contou a sua enorme dúvida, fui com ele folhear o que encontrei mais à mão. E lá estava, entre outras coisas:

nefelibata

“indivíduo que, animado de um ideal, não atende aos factos da vida real, positiva”

Benditos sejam os dicionários! Este pôs um sorriso enorme no rosto torturado do meu amigo.



[Texto publicado no 5º jogo das 12 palavras, a saber: casulo, conversa, inferno, inundar, luar, movimento, nefelibata, ostracismo, país, vapor, variável, vertical. Beijos, abraços e bom fim de semana!]


segunda-feira, agosto 18, 2008

As noites do rio



De noite o rio não dorme. Na incerteza do caudal que o mar lhe permite, torna-se ruína de pedras e lodo ou braço de água bem pleno, a reflectir as luzes da cidade amada. A ponte, que dizem ter sido pisada por homens de tempos passados e outras glórias, é o ponto de paragem de quem olha, de quem ali encontra o pedaço de alma que só certos lugares nos devolvem. Entre a ponte e o rio existe um amor antigo, feito de aproximações e fugas. Por vezes ele quase a beija para logo a seguir se afastar, raso no fundo do leito. Nas renovações e desencantos de cada dia, perdura o amor daquele rio pela ponte que o completa.
A vida que fervilha na água também não pára nas horas em que o sol se esconde. Peixes movem-se em conjunto, dançando estranhas coreografias. Por vezes saltam fora de água, reflexo prateado que a lua acentua. Volteiam, aproximando-se do local onde o homem lhes costuma dar pão. Que razão leva um empregado de café, perdido entre gente diferente daquela com quem foi criado, a ser amigo dos peixes do rio? São estranhos os afectos que a vida nos põe no caminho.
Na maré vazia, quando a água é escassa e o leito aparece, impudico, os homens escavam na lama, à procura do que lhes dará o sustento do dia seguinte. Enquanto a maré permitir.
No cais, onde a água já está mais perto do seu destino, ecoam os sons da azáfama dos homens nos barcos que ainda não saíram. Todos preparam o dia que se segue, sem que a beleza da noite os faça parar. Só o rio se estende, preguiçoso, namorando agora a lua e a cidade. Quem olha, deixa que a fascinação domine as horas da noite.

quarta-feira, agosto 06, 2008

talvez




talvez a água tenha escorrido
pelo teu corpo
e falado da loucura
das minhas mãos de cal.
quem sabe no cotovelo do rio
viste emergir do lodo
os meus braços raízes
estendidos em sobressalto
como rosácea de oferenda
a algum deus implacável.
talvez a água te tenha dito
do vasculhar na memória de ti
vendaval sem método ou limite
no leito onde corre a minha vida.


[Onde nos levam as palavras... Este foi o texto publicado a 24 de Junho no 4º Jogo das 12 Palavras que eram: água, cal, corpo, cotovelo, emergir, lodo, loucura, método, raízes, rosácea, sobressalto, vasculhar. Boas férias, fim de semana prolongado, o que quer que seja! Voltarei um dia destes.]

sexta-feira, agosto 01, 2008

Alentejo



Na planície, nos montes, nas terras, na brisa quente que nos envolve.

Bom fim de semana a todos. Um beijo.