domingo, novembro 30, 2008

vórtice



agora não me largues a mão. caio em espiral por todos os dias pintados numa cinzenta cortina de água. vórtice sem fim. a chuva da infância deixava poças nos campos. obrigava às galochas de borracha . e à raiva de ter que as usar. lembras-te? não, tu não estavas lá e nem sei se usaste galochas de borracha. e, se me lembro bem, também não estavas quando a água caía gelada e em mim já havia um calor púbere. ou serias tu com outro rosto. jovem, jovem, como se pode ser tão jovem? alguma vez foste tão jovem? e o vórtice que me arrasta. pequenos guarda-chuva, pequenas galochas com bonecos, beijos e sorrisos. também não eras tu. nunca foste ou foste sempre? agora já deixo que o vórtice me leve. não quero parar. ou talvez sim. algures em frente ao mar. lá fora a cortina de água adensa-se em tempestade. e nós isolados. nós? não tu. ficaríamos ali e um dia alguém nos encontraria. sonhos, sonhos. alguma vez sonhaste assim? deixo que a espiral me puxe para mais próximo do momento em que começou a ser o teu rosto. as múltiplas faces de ti. e a chuva em dias de natal próximo. com cânticos dos pedintes para lá da janela. e nós, finalmente nós. estou a chegar. sei que a espiral da memória me vai atirar para aqui onde a água bate nos vidros. agora não me largues a mão. de ti já vi todos os rostos escondidos por trás do véu de água.

quarta-feira, novembro 26, 2008

lonjura




que dizer desta lonjura
que se me espalha nos olhos
como névoa sem levante?
que falar deste torpor
que as tardes em si carregam
e sobre mim se depõe?

guardo as palavras restantes
no claro cristal da memória
esperando o raiar do sol.

domingo, novembro 23, 2008

As tuas mãos



by Xavier Baglin

E sempre as tuas mãos. Sacrário de silêncio onde celebrava o misticismo do amor. Unguento sobre a pele. Pelo toque me davas o pão do teu corpo. A água que o sincelo da minha alma gerava, matava-me a sede. Naquele eremitério feito de horas isoladas procurávamos a infinitude improvável. Precisávamos urdir uma rede fina, preciosidade de protecção contra a auto comiseração e a aleivosia dos outros. Talvez a malha fosse larga demais. Por ela fugiu tudo o que ritualizava o amor e, por fim, até as tuas mãos.


[Este é um dos textos que escrevi para o 8º Jogo das 12 palavras. Publico-o aqui, hoje, também como uma forma de celebrar o lançamento, no sábado, do Livro "22 Olhares sobre 12 palavras". Podem ver a reportagem aqui, aqui e aqui (obrigada, Nina.)]

quarta-feira, novembro 19, 2008

Marta Maria Mulher




by Vermeer, Christ in the house of Martha and Mary

“Martha, Martha, you are worried and distracted by many things. There is need of only one thing. Mary has chosen the better part, which will not be taken away from her”.’

Fala de Jesus na casa de Marta e Maria

A acreditar no que a Bíblia nos diz, só há necessidade de uma coisa. A fé e o amor incondicional. A escolha de Maria que acreditou, confiou cegamente e se dedicou exclusivamente à adoração e bem-estar daquele que amava.
Sempre me senti a viajar entre Marta e Maria. Sem que isto tenha algo a ver com crença religiosa. Marta é a acção necessária, a dúvida sistemática, o olhar virado para o mundo material. Maria é a confiança cega, a adoração, a total entrega a um amor (divino ou não). Marta desconfia de milagres, a não ser os que ela própria consegue. Maria crê cegamente nos milagres do Jesus que adora.

Como seriam, no mundo de hoje, Marta e Maria? Não sei sequer se este louco mundo permite a existência de tais estereótipos. Em proporções diversas, temos todas algo de Marta e algo de Maria. Agimos, trabalhamos, duvidamos e amamos na mesma medida. A vida divide-se em tantos compartimentos, as solicitações são tantas que damos de nós x de Marta e y de Maria, em cada caso. Para encontrarmos um qualquer z, solução das situações por que passamos. Mas como nos sentimos mais, quando estamos sós, perante o nosso espelho interior? Eu não consigo deixar de me sentir, apenas, Marta Maria Mulher.

sábado, novembro 15, 2008

ténue


sinto-me ténue
miragem indiferente
nuvem de vapor criada
pelo toque do sol quente
na pele do asfalto molhada

quarta-feira, novembro 12, 2008

no crer de te querer


é valsa volteio
roda que rodeia
mar de marear
tango que me tange
corda que acorda
ecos recuados
som fora do sono
jeito de enjeitar
ritos já sem grito
no crer de te querer

segunda-feira, novembro 10, 2008

Memória



Não sei se é o cheiro da casa ou o frio que a entranha por desabitada, sozinha. Uma casa de vozes ecos de tanto tempo atrás que já nem sei se os confundo. Talvez as tias avós já não se separem na memória e a bisavó não vestisse sempre de negro. Dela sei os últimos dias naquela cama grande e o sussurrar dos outros no corredor. E eu pequena demais naquele canto da casa. A pensar que era tudo exagero dos outros, as bisavós não desaparecem, não morrem (o que era a morte naquele tempo?). Um desaparecimento, um ir embora. Mais tarde, quando uma das tias avós (qual delas, agora já tudo é nebuloso) “desapareceu”, já sabia o que era a morte. Tinha-a visto nos olhos dela, dias atrás. Sorriu e despediu-se com a morte nos olhos. E eu rapariga, já mais que adolescente, sem surpresa quando me disseram: a tia morreu.
Nesta casa aparecem-me assim estas confusas memórias e sou sempre pequena a um canto, fugindo das lágrimas da mãe que nunca ali conseguiu paz para viver. Só depois, só quando abandonámos a casa. E ela foi ficando assim desabitada, sozinha. Já nem o pai, já nem ele para nos ligar ao cheiro da casa, para nos levar lá nos Natais como se ali fosse o nosso lugar raiz. Não sei se alguma vez foi, para mim, raiz. Já nem o pai. Terei também visto a morte nos olhos dele? Antes um adeus. E não quis acreditar. Não quis. E depois só me lembro das crianças, tão pequenas elas também, pelos cantos de outras casas. Tão pequenas que a menina que se encolhia dentro de mim precisou crescer. Esta casa traz-me sempre confusas memórias. E outras, claras e lúcidas. Demasiado nítidas.

sexta-feira, novembro 07, 2008

Por vezes falo de nuvens



Nem só pedras
Nem só terra agreste
Nem só águas em sobressalto

Por vezes uma nuvem branca em céu claro
Sol velado por novelos de sonho
O caminho feito em redor do poço
Na espera do jorrar da água
E o lançar da alma na espuma do mar
Cobiçando o azul intangível

terça-feira, novembro 04, 2008

Ana à janela



by Dominique Dupont & Christian Duprez

Ana olhava o mundo através do vidro sujo da janela. Aquele que conhecia, pelo menos. Existiam outros mundos, diferentes. Isso tinha-lhe dito o homem de olhos cor de mel, no tempo em que as mãos dela faziam ninho nas dele. Tinha-lhe dado um relance, um olhar distante sobre esses mundos. Depois partira. Ou, na verdade, não. Um silêncio gritante viera preencher o espaço entre eles. Ana deixara-o partir, devagar, despedindo-se um pouco em cada dia. E, nesse tempo, não olhou para o vulto dele, afastando-se. Nesse tempo julgava saber muito, quase tudo. Alcançaria esses mundos, sem ele. Ou viveria feliz no seu. Sem dependências, sem frustrações. Ana julgava saber quase tudo… Depois veio aquela era em que atravessou o deserto. E o tempo dos oásis de água inquinada. Sobreviveu mas não encontrou mundo algum que fosse diferente. E voltou para trás do vidro da janela. Cada vez mais sujo. Julgava ter avistado os olhos cor de mel, procurando-a na distância. Mas como ter a certeza? Aquele vidro baço impedia-a de ver claro. Podia ter aberto a janela. Não o fez porque, lá fora, no mundo de sempre, estava demasiado frio.

sábado, novembro 01, 2008

vento que perturba



há um vento que perturba
o remanso das árvores
um tremor do ar, uma inquietação
um sopro de pó que arrasta a palavra
a espalha e volteia em espirais de dança
um vento da terra, uma mutação.