domingo, julho 30, 2006

Sem ti






Sem ti
recolho-me à tela dos dias
pintados de frescura azul
mergulho na pele de mim
tecido vivo em que te cosi
te prendi.
Encontro um grito velado
escondido entre a carne
e a superfície
que enche a brandura da tarde
do cio das horas antigas
por viver.



Foto by Izabel

quinta-feira, julho 27, 2006

O segredo





Caminhava com uma sensação de plenitude que há muito não tinha. Sentia a areia nos pés e era macia como o veludo mais suave. Uma ligeira brisa brincava-lhe com os cabelos e era uma carícia, um doce arrepio. O sol deixava-lhe no corpo a sensação morna do desejo satisfeito. E o mar, companheiro antigo de dores e alegrias, era um parceiro de brincadeiras, cúmplice de prazeres antecipados.
Caminhava naquele dia com um leve sorriso nos lábios que lhe vinha directo da alma. Tinha uma certeza e uma só: estava grávida do segredo de amar.





Foto by François Benveniste

terça-feira, julho 25, 2006

Mundos estanques






Há mundos que não se tocam. Não se podem tocar, porque existe algo que os torna letais um para o outro.
O homem vivia nos dois mundos. Na verdade, ele era a charneira única entre eles. E assim se manteria pela eternidade possível, se conseguisse respeitar os habitantes daqueles mundos e a sua curiosidade não se sobrepusesse ao perigo.
Diz quem me contou esta história que ele não foi cuidadoso. Digo eu que, de tanto ouvir falar disto, tenho a sensação de o conhecer, que não resistiu à tentação de, de alguma forma, misturar os dois mundos. Abriu uma janela de comunicação, suficientemente segura, pensava ele. Sabemos todos que não há janelas seguras, nem com todas as grades e sistemas de alarme possíveis. De uma forma insidiosa, os habitantes de um lado e doutro espreitaram-se, admiraram-se e ressentiram-se ao perceber que o homem não pertencia inteiramente a nenhum deles. E aquele veneno que era a razão pela qual os mundos não se podiam tocar, começou a espalhar-se. Lentamente, foi afectando os habitantes do mundo que tinha menos defesas. O outro seguir-se-ia. Para se salvarem, procuraram refúgio. Do mundo de lá e do homem. Espantado, magoado talvez, o homem recolheu-se no mundo que sobreviveu. Não conta a história se destruiu a janela. Nem se o coração do homem se quebrou de desgosto. Sabe-se, no entanto, que um dos mundos ficou deserto para sempre ( sempre, é até onde conseguimos saber…).





Foto by Ruip

domingo, julho 23, 2006

A rapariga dos balões






Na terra, todos conheciam a rapariga dos balões. Ninguém sabia, no entanto, dizer de onde tinha vindo, quem eram os pais, o que fazia ali. Ninguém lhe conhecia um nome. Nem ela própria. Vivia numa velha casa abandonada, subsistia do que lhe davam e não tinha amigos ou família. Andava sempre agarrada àquele molho de balões multicolor. Na casa escura e suja, só os balões criavam a magia dum sorriso, em quem entrava.
As crianças da terra corriam atrás dela, pedindo um balão que ela negava, como se fosse a sua única riqueza, talvez o único sonho realizado. Já lhos tinham roubado mas, sem que alguém conseguisse explicar, num instante aquela nuvem de cor soltou-se das mãos que o agarravam e voou, ficando a pairar junto à porta da velha casa. Pertenciam-lhe, dizia o povo. Ninguém mais questionou essa verdade, mas todos se interrogavam o que significava.
À medida que crescia, os rapazes da terra começaram a rondar-lhe a porta, tentando decifrar todo o mistério que ela carregava consigo, como se uma noite de sexo lhes desvendasse aquilo que ninguém tinha entendido até aí. Corria-os à pedrada, como um animal acossado. Não era esse o sonho que carregavam os balões. E, sabe-se lá porquê, ganhou fama de louca, insultada sempre que palmilhava as ruas íngremes e se esgueirava pelos becos escuros.
Desapareceu, numa noite de chuva em que todos se agasalhavam em casa. Sem rasto. Na porta de cada menino, ficou pendurado um balão e, na velha casa, um bilhete escrito em papel amarrotado:

- Não há lugar para mim na terra que escolhi. Volto para onde os balões não são necessários.





Foto by anIa bystrowska

quinta-feira, julho 20, 2006

A tua gargalhada...




Ela ria, por vezes apenas para espantar a melancolia que se lhe colava à pele. Um dia, disseram-lhe que tinha uma gargalhada provocadora. Não, na verdade, disseram-lhe que o riso dela era um convite.
Por baixo do seu ar distante, agitou-se a certeza de que, daí para a frente, riria muito mais. O seu riso soava ao telefone, saia cristalino dos lençóis amarrotados pela doce luta do sexo, desdizia suavemente as palavras carinhosas que não continha.
Dias havia em que calava aquele som que nem ela sabia se era, realmente, sinal de alegria ou apenas uma imagem de marca. Eram dias de silêncio, em que apenas monossílabos lhe saíam dos lábios. Nem definia o que a bloqueava, apenas esperava que alguém lhe dissesse, de novo:

-Ri para mim. Gosto muito da tua gargalhada...

De riso em riso, de adeus em adeus, extinguiu-se o som de água cristalina. Saía-lhe só um som rouco, como uma troça que fazia de si própria. Pouco a pouco, a vida ensinou-lhe a sorrir, um sorriso leve e por vezes amargo, talvez não o convite de outrora, mas certamente uma ponte para a cumplicidade.





Foto by eolo perfido

terça-feira, julho 18, 2006

Da rosa





Deixa-me falar-te da rosa. Macia, perfumada, enfeitada com as mais belas cores. É assim que a vês? Olha mais perto as pétalas que te encantam. Repara como começam a murchar, a perder o brilho, o acetinado. A cor muda e até o perfume se desvanece. Pétalas e folhas percorrem o caminho para a queda, num tempo breve, tão breve…
Já não te falo dos espinhos. Se não reparaste neles quando a beleza estava no auge, porque irão magoar-te, agora?
Mas diz-me, não é a mesma rosa? Não é a que pôs no teu olhar o brilho dos dias felizes? Guarda-lhe a essência, o reflexo de cor que ficou gravado em ti.Torna-a eterna, visão perene da beleza perfeita que, por vezes, nos toca ao de leve e logo parte.





Foto by Luben Karavelov

domingo, julho 16, 2006

O túnel da esperança




- Naqueles dias, os homens olhavam, apreensivos, as nuvens negras no céu e cheiravam o ar que se tinha carregado de um cheiro nauseabundo. A cidade tinha-se tornado um lugar hostil e muitos eram os que falavam em partir. Outros diziam que, enquanto as aves ficassem, enquanto o seu voo se recortasse no cinzento que envolvia a terra, haveria esperança. Por isso, pelas aves que os faziam sonhar com o azul que já não conheciam, decidiram tentar sobreviver ali. Faziam turnos no Túnel da Esperança, à entrada da cidade, talvez para evitar uma ameaça que não conheciam. Tinha sido chamado assim noutros tempos em que o sol brilhava e aquela era uma cidade de gente que ali queria construir um futuro. Era tão alto que parecia tocar o céu e alguns ainda se recordavam da beleza do voo das aves iluminadas pela luz, quando entravam ou saíam da cidade.
Um dia, igual a todos os dias desde que as trevas tinham começado, um grito terrível acordou quem conseguia dormir. Vinha dos lados do túnel e todos se precipitaram para lá. Viram primeiro as aves que dançavam um louco bailado e batiam contra as paredes, na ânsia de escapar. Depois estranharam a escuridão que ali reinava, maior que a habitual. A saída do túnel estava tapada. Aves e homens, presos na cidade negra, sabiam que não havia voo que os salvasse.


Um homem ainda jovem olhou toda aquela gente a quem contava, mais uma vez, a mesma história. Que fazer com aquela multidão esfomeada e cheia de doenças? Disse, para si próprio, que não seria mais difícil convencê-los a viver do que deitar abaixo a parede do túnel. Trinta anos, pensou. Trinta anos de vida desde que encontrara o túnel fechado, quando regressava de uma correria de criança pelos montes à volta. Não queria pensar nisso, agora. O sol aparecia de vez em quando, fazendo todos fechar os olhos desabituados.

- Muitos morreram. Mas um dia, tão misteriosamente como se tinha fechado, o túnel abriu-se e as aves voltaram a voar, livres. Vocês sabem. E talvez possamos chamar à nova cidade que vamos construir, a Cidade da Esperança.





Foto by GC