sexta-feira, julho 25, 2008

A morte da infância




Lembrava-se daquela manhã marcada na lonjura da infância. Desejava afastar a recordação mas sabia que voltaria, recorrente como a sensação de vulnerabilidade que lhe deixava.
Ainda sentia o pisar suave da tapeçaria da sala dos avós. Parecia abafar a vida, afastar a possibilidade de um grito. Um grito, sequer. Sentia a morte rondar por ali. Não era a morte a ausência da vida? Tão criança era, e já lhe sentia o arrepio. Mas naquela manhã era pior. Quis correr para o quarto do avô. Homem rude, nunca lhe tinha demonstrado grande afecto, mas nem por isso deixava de ser o seu melhor conselheiro. Uma espécie de exponente da sua formação, alguém que lhe abria as portas do mundo dos adultos, confuso e traumático. Ou talvez apenas causador de pena. Dava-lhe segurança avistar a silhueta já curvada, em contra-luz na janela do quarto.
Não era assim naquela manhã de orvalho gelado. Um nó na garganta não o deixava respirar, como se ali fosse ficar em permanente obstrução. Entendeu, sem que ninguém lhe dissesse, que o vulto do avô seria, daí em diante, apenas uma lembrança. E o seu choro silencioso ecoou como o grito que nunca lhe tinham permitido dar, naquela sala.



[Este foi o meu texto para o 3º Jogo das 12 Palavras. As palavras escolhidas foram: afastar, conselheiro, criança, exponente, manhã, morte, obstrução, orvalho, pena, silhueta, tapeçaria, vulnerabilidade. Bom fim de semana para todos e dêem uns minutos de atenção ao que está anunciado ali na barra lateral, fruto do sonho do grupo que tem dado vida a este desafio... ]

sexta-feira, julho 18, 2008

História de uma foto



Era em Paris. É fundamental clarificar. Não há nisto qualquer snobismo. Quem alguma vez mergulhou a sério naquela cidade sabe o que quero dizer. A minha segunda cidade, apenas porque o que me liga a Lisboa tem raízes profundas de vida. Paris é um encanto fundado em vários encontros mas que, na verdade, são apenas encontros. Não há o tempo da desilusão.
Mas era assim em Paris, num Abril cheio de sol, quando aquela luz sobre o Sena já se mostrava aos olhos de milhares de turistas. Naquele dia tínhamos decidido subir a Montmartre. Celebrava-se um aniversário de quem ali ia pela segunda vez, sendo que, na verdade, era a primeira com um olhar adulto. E o que podia ser mais típico que Montmartre? Foi difícil chegar lá acima. O velhinho funicular não funcionava e, chegados a Abbesses, lá fomos, parte a pé, parte de autocarro, até ao cimo da colina. Os olhos sempre vagueando pelas fachadas dos prédios, as lojas de tudo o que se pode imaginar, parecendo algumas ter parado no tempo. O Sacré-Coeur era indiferente à multidão de turistas que se acumulava para fotografar e ver aquela vista de Paris. Aquela… porque é única. Paris tem muitos locais onde pode ser olhado a perder de vista. Aquela talvez não seja a mais abrangente mas é, na verdade, única. Ou talvez o local seja único. É algo que não se esquece, olhar Paris sentado nos degraus da basílica.
Perdemo-nos por ali até o sol baixar. Por aquela altura, já estava decidido jantar na Place du Tertre. Na verdade, a praça tinha tanta gente que era quase impossível “apanhar” a atmosfera que por lá paira em épocas mais sossegadas. Olhar os quadros, olhar os aspirantes a artistas. Por muito adulterado e adaptado ao turismo que o local esteja, restam ainda alguns “genuínos” artistas de rua que ali trabalham ou apenas tentam vender a sua obra. Mas cuidado que a caça ao turista está aberta, por ali… Não sei se aquele que captei é um dos genuínos ou não. Pareceu-me tentar reviver Gauguin, no seu tempo de influência do Taiti. Não resisti a capturar a cena, de tal maneira respirava o “ar de outro tempo”. E o dia acabou com um jantar a não esquecer na Mére Catherine, onde a palavra “bistrot” foi inventada. Querem saber como? Podem ver mais aqui. Quanto a mim, depois de escrever isto, fiquei com vontade de partir. Já.




[Esta quinta-feira no Palavra puxa palavra o tema era ARTE e esta foi a foto com que participei. Bom fim de semana, com arte e sol!]

domingo, julho 13, 2008

Água, águas...



[Uma boa semana para todos!]

sábado, julho 05, 2008

A primeira viagem




Pôs o pé no primeiro degrau da carruagem, olhando a plataforma na esperança de que alguém tivesse vindo despedir-se. Aquela era a sua primeira viagem para lá da cidadezinha de província onde vivia. Fantasiara que alguém chegaria à estação a correr com uma caixa de chocolate e flores nos braços. Como nos filmes. Mas quem viria? Na sua vida ignorada de empregada de uma pequena empresa, tinha um ou dois conhecidos a quem nem podia chamar amigos. E vivia só. Da família, tinha a ideia ténue da existência de uns longínquos parentes. Quem viria, na verdade?
Era a primeira licença que tirava, mais por não saber o que fazer do que por zelo no trabalho. Mas, num dia em que o sol brilhava e um sorriso desconhecido a tinha acariciado, decidira aventurar-se. Aqueles quinze dias ao pé do mar talvez a tirassem da sombra em que sempre tinha vivido.
Entrou na carruagem, abriu a janela e aspirou o aroma envolvente dum belo dia de Verão. À medida que o comboio ganhava velocidade na linha, algo lhe dizia que ia iniciar uma nova vida. Fechou os olhos e sonhou com águas cálidas e um desconhecido cujo rosto não tinha ainda contornos. Não era sempre assim nos filmes?




[Este é o texto do 2º Jogo das 12 palavras. Para este jogo, foram escolhidas as palavras: caixa, chocolate, degrau, envolvente, flores, licença, linha, sol, sombra, ténue, viagem, vida. Bom fim de semana!]