quarta-feira, maio 30, 2007

Haiku para uma foto (I)




No limite seco do caule
A folha virada para o céu
Nem uma sombra projecta

domingo, maio 27, 2007

Essência




Não sou mais
que a palavra escondida no meu beijo
emprestada à carícia dos meus dedos
reflectida em silêncio nos teus olhos.

Janeiro 2006

Foto by Sophie Thouvenin

quarta-feira, maio 23, 2007

Alma nua




Pés descalços. Pedia-lhe a areia, suplicava-lhe a espuma das ondas. Mas a mente não obedecia. Algo lhe dizia que não eram os pés, não era o corpo que devia desnudar. Precisava despir-se de muito mais para absorver toda aquela luz. Precisava tirar de si tudo o que pudesse tapar a transparência do azul. Docemente, como quem se entrega a um amante, despiu a alma e lançou-a na imensidão de água. Sem um traço de lama, sem um véu de tristeza. Nua.

domingo, maio 20, 2007

A corrente do tempo




E assim se juntam os dias na corrente do tempo. Por vezes dizemos: “Já aqui estive. Já aqui fui eu, sem mim. Já aqui me perdi". São esses os dias brancos, a que não pomos nome porque não os queremos recordar. Mas encontram o seu caminho nos meandros da memória. E conseguem acordar a lembrança de outros dias, a colorir os dias brancos. Somos assim, balançamos entre o que chamamos cor e o que a reflecte ou a absorve. Branco e negro. Luz e trevas. Salpicados da cor de muitos dias.

quinta-feira, maio 17, 2007

Grito preso




O Grito, óleo sobre tela de Edvard Munch


se o grito saísse
se o som alcançasse o longe mais longe
se a voz me ajudasse
e lançasse o eco por esses caminhos
talvez se soltassem os nós que atam
o peito que arde
talvez se rasgasse o véu que tapa
os olhos que doem
talvez visse hoje no ecrã cinzento
a vida a cores
diferentes.
se o grito
da voz
e o eco
no peito
e as cores
nos olhos
talvez…


[Em Agosto de 2005 escrevi este texto. Agora, sem grande vontade de escrever, pareceu-me adequado. E já que por aqui passou Munch na sensualidade, porque não na angústia?]

terça-feira, maio 15, 2007

A noite




Hoje anoiteceu de manhã. É sempre noite quando se perde um amigo. Não quero dizer adeus. Fica o som e a imagem. Ponte de união. Até já.

segunda-feira, maio 14, 2007

"Meme" - resposta a um desafio

O JPD desafiou-me a continuar mais esta cadeia da blogoesfera. Assim...

*Um "meme", termo cunhado em 1976 por Richard Dawkins no seu bestseller controverso The selfish gene, é, para a memória, o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento ou cérebros. No que respeita à sua funcionalidade, o "meme" é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma autopropagar-se. Os "memes" podem ser ideias ou partes de idéias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma.

Fonte: Wikipédia



Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.


Bernardo Soares, Livro do Desassossego



[Perdoem que não escolha ninguém para continuar esta cadeia. Agradeço ao JPD e deixo-a para todos os que por aqui passam.]

sexta-feira, maio 11, 2007

Variação sobre a Madonna de Munch




Madonna, óleo sobre tela de Edvard Munch


Senhora
Madona dos sonhos intensos
Proibidos
Deusa feita do barro
De todas as mulheres
Solta os cabelos nos ombros
Enfeita o colo onde começa
A raiz da terra.
Senhora mulher e matriz
Amante desejo dos teus filhos homens
Dá-nos o sol do teu corpo
Pecadora sem mácula nem castigo
Liberta-nos do mal
Madona!

terça-feira, maio 08, 2007

Erro de perspectiva




O céu, lá em cima. A árvore, de ramos frágeis, enfeitou-se de folhas jovens e tentou subir. O céu, azul, inatingível. Ergueu os braços ramos até ao limite. Nem conseguiu tocar o tecto azul polvilhado de algodão. Mas o que tinha sido construído, ali mesmo ao lado, parecia-lhe sólido e enorme. Atingindo com segurança aquele céu desejado. A árvore invejou aquele bloco que lhe dava vertigem olhar. E conformou-se com a sua incapacidade. Nunca entenderia que, na base do seu desgosto, estava apenas um erro de perspectiva.

sábado, maio 05, 2007

Voltara a Paris




Pensava na vida, enquanto ia olhando as publicações que os bouquinistes expunham. Gostava do passeio mas perguntava-se o que levava aquela multidão de países vários às margens do Sena. Tudo aquilo lhe era familiar desde criança. Falhava-lhe o entendimento da magia que os estrangeiros encontravam naquele estendal de livros antigos, posters, postais. De câmaras em punho, fotografavam, filmavam… Encolheu os ombros. Mais valia ignorar aquele burburinho.
Voltara a Paris. E pensava na vida, claro. Na mulher e no filho que tinham ficado na terra onde trabalhara. Na inesperada “deslocação” da empresa que o deixara sem grande margem para os sustentar. Parece que era uma tendência em toda a Europa. Que lhe interessava isso? Nunca ligara muito à política, menos ainda às tendências da economia.
Voltara a Paris. Tinha um quarto nos subúrbios e todos os dias vinha procurar uma oportunidade de trabalho. Nada tinha aparecido e começava a desesperar. Olhava os que dormiam na rua, nas estações de comboios. E tinha um arrepio. Para arejar a cabeça, dava longos passeios nas margens do Sena. Olhava toda aquela gente, animada, feliz. Porque viriam até ali? Nunca tinha tido a ambição de viajar. A mulher, sim, queria ir de férias para outras paragens. Agora, ia ser complicado.
Voltara a Paris. Estava tão absorvido nos seus pensamentos que nem ouviu o barulho do disparo da câmara. Mas ainda viu que mais uma turista estava a fotografar e parecia apontar na sua direcção. Afastou-se, farto de tudo aquilo. Era só o que faltava, ficar nas fotos de uma fulana qualquer. Vida do diabo!

quarta-feira, maio 02, 2007

Contradição





Não sou a imagem que crio. Mostro frequentemente de mim o reflexo errado. Resolvo, passo a passo, as minhas contradições intrínsecas. E crio outras. Assim sou, de tentativa em tentativa, à procura da minha própria coerência.


Foto by Anton Zarev