quarta-feira, agosto 30, 2006

Variações com paisagem e barco





As nuvens
As nuvens a tocarem o mar
As nuvens a tocarem o mar no horizonte fechado
As nuvens a tocarem o mar no horizonte fechado sobre o barco
As nuvens a tocarem o mar no horizonte fechado sobre o barco da vida.
E o grito do silêncio.




Foto by Maciej Knapa

segunda-feira, agosto 28, 2006

O homem que inventou o mar





"O mar cheirava a uma vela inchada pelo vento, onde a água, o sal e um sol frio se uniam"

Patrick Süskind, O Perfume


O homem ouvira falar do mar. Um daqueles viajantes que carregam consigo sonhos em forma de palavras, tinha dito das ondas, do azul, da imensidão de água. Falara dos peixes que o habitavam, contara lendas de espantar e dissera que os homens dos mundos à beira mar os pescavam, horas e horas sentados nos locais onde a água vinha tocar a terra.
Aquele homem vivia sozinho, num país árido, quase deserto. Tinha envelhecido a sonhar com o mar. Queria apanhar um peixe, ser da água, vivo, brilhante. Queria que as ondas o molhassem, lhe refrescassem o corpo, queria dar-se àquela água que, tinha a certeza, o esperava. A sua cana de pesca era um pau fino que todos os dias afagava, imaginando o belo peixe que nela dançaria. Até talvez o desse depois ao mar, onde afinal pertencia.
Um dia partiu. Caminhou na secura desértica sem que encontrasse nem vestígios de água. Olhou a planície à sua frente e desejou a frescura do mar que o viajante lhe descrevera. E avançou, com uma certeza profunda.
Contam, naquele país longínquo, que ninguém mais viu o homem. Na planície, encontraram o pau que sempre o acompanhava. Na sua ponta, já seco do sol tórrido, estava um peixe que alguns reconheceram das histórias que tinham ouvido.





Foto by Maciej Knapa

sábado, agosto 26, 2006

Se...





Se soubesse escrever um longo poema
um rio de palavras transbordando as margens
falar da vida do amor ou da morte
de paixões ardentes ou desejos simples.
Se soubesse agarrar o fio do que sinto
ou apenas sem pudor atirar à sorte
sons que dissessem das vezes que minto
e das que mentindo me mostro.
Ser fingidor ou poeta
como se estivesse inscrito no destino
coisa em que nem acredito.
Se arrancasse de mim ais de dor sentida
ou sátiras setas que acertam o alvo
ou a pura alegria do milagre da vida.
Se soubesse ser eu nas palavras que escrevo
e todos os outros que em mim se inscrevem.
Se ser poeta me fosse concedido
por um dia ou uma hora de ilusão.

Seria esse tempo de fazer amor contigo
que o poema quer-se vivo!



Foto by Beda

sexta-feira, agosto 25, 2006

Etiquetas

Fui etiquetada pelo Herético que, ainda por cima, fez uma batota incrível na resposta...:)). A sério, agradeço a "cristalina vibração" e fico sensibilizada por me ter indicado (há-de haver ocasião para retribuir…). Quanto às minhas “etiquetas”, acho que o que se segue é uma parte do que quem me me conhece sabe que eu sou.



1- Considero que a intolerância e a discriminação, em todas as suas manifestações, estão entre os piores males da humanidade.


2- Preocupo-me com o que me rodeia. Todo o tipo de injustiças me “tira do sério” como diriam os nossos irmãos brasileiros.


3- O tipo de paisagem em que me sinto bem tem que incluir água (rio, mar, lago, seja o que for).


4- Muitos livros me marcaram. Um de que me lembro sempre, em especial: A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera.


5- A minha música é a música do mundo, aquela que incorpora as raízes de uma ou várias culturas. Amo o jazz e todos os seus cruzamentos com outras influências.


6- Gosto de cinema, embora a maioria do que se faz neste momento (efeitos especiais e pouco mais) me diga pouco. Filme de culto: Casablanca. Realizadores preferidos: Clint Eastwood, Martin Scorcese, Jean-Pierre Jeunet, Roberto Benigni.

E vou passar as etiquetas para:

diabinho ( quem se interessa por um mail em branco, tem concerteza muito para dizer de si próprio)

Diafragma (para conhecer um pouco mais os gostos, para lá da fotografia )

Minda (simples curiosidade, sem razão óbvia)

Magia ( uns pozinhos de perlimpimpim e já está…)

Amazing ( agora é que vamos ficar a saber mais coisas… :))

Daniel Sant’iago ( deve odiar estas cadeias tanto como eu, mas uns jogos de palavras resolvem isto num instante…)




Fotos retiradas do Google e de autor desconhecido à excepção da paisagem do ponto 3 que é da autoria de vida de vidro

quarta-feira, agosto 23, 2006

Azul, azul...





Lembrava-se dos cortinados azuis que ondulavam na brisa que vinha do exterior. Seriam azuis mesmo ou era apenas a necessidade que tinha de fantasiar aquela fronteira entre o espaço confinado do quarto e o mundo lá fora? Azul era tudo o que sonhava. Azul era a cor que lhe adoçava certezas amargas. Por isso, quando dizia “azul”, duvidava sempre um pouco. Talvez os sentidos a traíssem, talvez manipulassem a cor. Quem saberia dizer?
Lá fora, ela imaginava vermelho. Quente e agressivo. Mas sabia que não era vermelho. E até sabia que o vermelho paixão invadia o quarto em ondas sucessivas que acabavam por a levar até uma doce letargia … azul.
Passou a classificar os dias numa escala de cores de que só ela sabia o significado. E a procurar o caminho de luz e mistério que a levava à fronteira dos dias azuis.





Foto by Sophie Thouvenin

segunda-feira, agosto 21, 2006

Guardador da luz cega





Naqueles dias, parecia aos seres da floresta que não havia luz no céu. Na verdade, aquele disco do céu que fazia as folhas brilhar e os aquecia, só tinha aparecido cinco minutos em cada dia. Era pouco e a angústia dos dias cinzentos começava a abater-se sobre os habitantes minúsculos do reino verde, aqueles que os homens não vêem quando os seus pés pisam pesadamente as folhas secas.
Reuniram-se os filósofos, os poetas e os cientistas. Os artistas assistiram, sem conseguir largar o que estavam a criar. De vez em quando, diziam de como a sua obra transmitia melancolia. Sem o disco dourado, tinham perdido a alegria que espalhavam em sons, em cores, em formas. Era preciso fazer alguma coisa. Se conseguissem guardar a luz daqueles cinco minutos…
Em plena reunião, um dos mais jovens entrou gritando que tinha encontrado um objecto estranho e muito grande. Parecia ter as cores do disco do céu. Talvez um dos que chegam de fora (chamavam assim aos homens para quem tudo ali era estranho) o tivesse deixado. Talvez o próprio disco do céu o tivesse enviado. Como podiam saber?
O objecto era belo e tinha uma cor quente semelhante à do disco dourado. Estava orientado para o local de onde a luz e o calor costumavam vir durante cinco minutos. Esperaram e, à hora habitual, os raios atravessaram aquela cor intensa e pareceu-lhes que toda a superfície do objecto brilhava e ficava mais quente. O mesmo aconteceu no dia seguinte e no outro e no outro…
Chamaram disco da terra àquela superfície que parecia ficar cada vez mais quente e cor de ouro alaranjada, como se toda a luz do disco do céu ali se concentrasse. Fizeram pequenos abrigos debaixo daquele disco quente. Nos cem dias em que o sol só brilhou cinco minutos a alegria não fugiu da floresta, enquanto as árvores e os arbustos bebiam toda a água necessária e se preparavam para o novo reinado do disco do céu.





Foto by naturalíssima (obrigada, Daniela, por criares imagens que são uma inspiração)

sábado, agosto 19, 2006

Ciclos





Para ela, a vida desenvolvia-se em ciclos que nunca terminavam abruptamente. Iam terminando, numa sucessão de sinais a que estava sempre (demasiado) atenta. Assistia, quase como espectadora, às suas reacções quando um ciclo começava a acabar. Porque todos os finais têm um começo. Ouvia os sons, sentia o bater do coração, reparava no cansaço, no aborrecimento… sinais. E um dia, que parecia súbito mas não era, decidia terminar o ciclo. Nessa altura, nada a fazia já voltar atrás. Tudo o que a prendia a um local, a uma pessoa, a uma “forma de vida” deixava de ter significado. Acabara o ciclo. Sofria? Claro, ser espectadora não a impedia de estar no palco da vida.

Hoje, resolveu terminar um ciclo. Os sinais já se faziam ouvir há muito e demasiado alto.
Parte dela ainda está dentro da personagem anterior. E sofre. Outra parte vive já num novo ciclo que durará exactamente até que os sinais lhe gritem que é altura de acabar.





Foto by António Delicado

quinta-feira, agosto 17, 2006

Só uma flor





Não quero flores. Porque me hás-de dar flores como se estivesses a ornamentar uma relação que, a viver, é só mesmo do que as nossas bocas não dizem? Não quero enfeites, nem palavras de múltiplos significados. Quero a verdade. Sobre a verdade não são necessárias flores.
Disse-te alguma vez que queria algo diferente? Se disse, foi num dia em que o sol me fez acreditar que me podias dar flores plantadas, vivas, e não cadáveres em potencial. Muito sol afecta o cérebro. Nada de flores, portanto. Hoje há nuvens no céu e estou em estado de lucidez.
Quando um de nós for embora, dá-me uma flor. Só uma. Coloca-a numa jarra, no local mais solitário que encontres. Concordemos numa coisa: enquanto ela viver, amar-te-ei. Quando morrer, guardar-te-ei para sempre numa gaveta da alma que só abrirei no dia em que me pareça que o sol brilha novamente.





Foto by Petrova

terça-feira, agosto 15, 2006

O dia amanheceu





Hoje o dia amanheceu igual
como todos os dias em que fui feliz.
Não sei qual o pássaro que cantou na árvore,
aquela das folhas que apanhei outrora
e pus no livro de poemas que lia,
naquele tempo em que a poesia chamava.
E liberta de todas as amarras
eu ia.

Hoje o dia amanheceu e espreitei
as folhas da árvore que dançavam ao vento.



Foto by Ennio

domingo, agosto 13, 2006

Barco ancorado





Falo de uma rapariga. Igual a todas as outras, sem nada muito especial que a distinguisse. Muito jovem. Não tinha planos, não acalentava grandes ambições. Só queria que a vida não se enchesse de dias iguais, plenos de tédio. Talvez fosse o que mais temia: a rotina, a falta de surpresas, o contemplar de um futuro completamente previsível.
Fez tudo o que esperavam que fizesse. Estudou, empregou-se, casou, teve filhos. Começou a sentir que o leme da vida lhe fugia das mãos e que a rota já estava traçada. Enquanto os filhos precisaram dela, encontrou um motivo para nada fazer que pudesse desviar o curso do destino.
Um dia sentiu-se verdadeiramente barco ancorado num porto. Um pequeno porto aconchegante, agradável mas de onde se via o mesmo horizonte, todos os dias. Tudo o que temia se tinha concretizado. E ela queria partir, por mais que lhe falassem dos perigos da viagem e de como era invejável o seu porto de abrigo.
Embarcou em algumas viagens mas voltou sempre ao porto que, em cada regresso, lhe parecia ter marés mais agitadas. E aconchego nenhum. Hoje, ela continua a ser um barco ancorado, mas num porto agreste. De vez em quando parte em busca de uma baía que, por uns tempos, sonha ser o seu porto de abrigo.





Foto by Luther Bash

quinta-feira, agosto 10, 2006

No país da guerra





O menino do país da guerra acordou com o estranho silêncio que pairava sobre a cidade. A mãe teria ido procurar algo que comer. Tinha que a esperar ali. Naqueles dias, sair das ruínas onde vivia era perigoso. Tudo era perigoso. Nunca mais tinha visto os seus amigos de brincadeiras. Perguntava à mãe por eles e ela só o olhava com os olhos muito abertos e secos. Não a via chorar há tanto tempo… E quase tinha saudades dos dias em que chorava por mais uma partida do pai ou porque tudo era difícil demais na vida que levavam. Agora, já nem se lembrava do rosto do pai.
Espreitou e não viu mais que escombros. Já não conseguia orientar-se na cidade. Todos os pontos de referência tinham desaparecido. Só ruínas e corpos que ninguém reclamava. Reparou naqueles objectos de metal espalhados. O pai tinha-lhe dito o que eram e como funcionavam.
Tinha fome, tinha muita fome. Não podia chamar, gritar, sabia que não devia atrair atenções. Chorava baixinho, com aquele aperto no coração que lhe acontecia sempre que não via a mãe. As lágrimas silenciosas correram quando começou a percorrer as ruas desertas, quando entrou no que restava das casas, quando, esquecido do perigo, gritou pela mãe. A voz encontrou eco nem ele sabia onde. Mas ninguém respondeu. Nem a mãe, nem os moribundos, nem os que costumavam procurar por toda a cidade um pedaço de pão. Nem os tanques, nem as bombas.
Sentou-se no chão e, em silêncio, chorou todas as lágrimas que tinha. E, de olhos e coração seco, esperou. Apanhou um dos objectos de metal e agarrou-o, na mão pequenina. Eles voltariam.





Foto by verboomz



[Não aprovo vinganças. Entendo desesperos e, sobretudo, anseio pela paz sem destruição da dignidade de ninguém.]

terça-feira, agosto 08, 2006

Nos caminhos de ti...





Há caminhos em ti que parte de mim deve ter conhecido desde sempre. Percorrê-los é regressar a casa, em cada vez. Sentir os cheiros familiares, os sabores que sempre foram os preferidos, sem que disso tivesse consciência. Aconchegar o corpo e a alma no lar que constróis em ti próprio para me receber.
Sabes que falo de todas as veredas, até aquelas que tentas esconder. Sulcos que percorrem o teu ser. Os que o teu corpo me dá e os que os teus olhos revelam.
Tenho saudades dos caminhos de ti. Mas sei que sou esperada. És a minha casa.





Foto by Sophie Thouvenin

domingo, agosto 06, 2006

Uma prenda para quem passa...





São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!


Miguel Torga



Foto by vida de vidro



[Uma prenda para quem aqui passa, no meu regresso de férias]

terça-feira, agosto 01, 2006

Uns dias de descanso

Volto na próxima semana. Vou aproveitar estes poucos dias para ter verdadeiras férias. Longe de casa, sem trabalho, fora da net, só descanso.
Até lá, um beijo para todos os que, em tão pouco tempo, começam a ganhar estatuto de amigos.