domingo, dezembro 17, 2006

O Natal é...





O Natal está a chegar. Aquilo que pode parecer uma afirmação trivial ou uma constatação óbvia sem qualquer importância de maior, desperta em mim uma terrível lista de sentimentos contraditórios.

Supostamente, celebramos um nascimento humilde, de alguém cujo pensamento foi revolucionário precisamente por espalhar a palavra do amor, da compreensão, da tolerância, do perdão. Perdoe-me quem é crente que diga só isto, mas para mim isto é o suficiente para celebrar Cristo, homem. Mas, para tal celebração, enfeitamos casas e cidades com tudo o que lembra o luxo, mesmo que fingido: luzes feéricas, dourados, prateados. Os nossos rituais de celebração incluem tudo o que, na realidade, é profundamente acessório e nos distrai os sentidos do essencial : um nascimento humilde, uma doutrina que, tomada à letra, modificaria completamente a face do mundo.
Na verdade, não mudou. As desigualdades, as perseguições, as guerras, a crueldade continuaram a existir, tanto nas civilizações cristãs como nas outras. Claro que existe aquilo que as diversas igrejas cristãs nos ensinam sobre a salvação, etc. Não direi nada sobre isso porque é, afinal, matéria de fé. E a matéria de fé não se discute.

Existe também o Natal como festa tradicional da família. É uma outra vertente, onde a ideia de Cristo pode estar presente ou não. É o Natal aconchegante, o Natal dos reencontros e das reconciliações, o Natal das crianças, dos sabores que se agarram à nossa saudade para a vida inteira. Mas é também o Natal do consumismo desenfreado, do “comer até fartar”, de tanta coisa que nos distancia do tal Natal humilde… E é o Natal dos solitários, dos que não têm família ou faz de conta que não têm. É o ponto alto de todas as solidões e a época em que todas as perdas da nossa vida se fazem lembrar.

Depois de tudo isto, o Natal é também aquela “época de ser bonzinho”. António Gedeão fala disso no seu poema Dia de Natal:

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros. coitadinhos. nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.


Pois é… E se fossemos bonzinhos todo o ano? Mas o mais terrível é que essa onda de boa vontade nos agarra de tal forma que começamos a lembrar-nos dos que morrem de fome no mundo, dos que as guerras matam ou estropiam (sem trégua de Natal), dos maltratados, dos que sofrem toda a espécie de abusos… Desculpem lá! Não há pachorra para o Natal.


(Sem nenhuma contradição, para todos os que aqui passam, os meus votos de um Feliz Natal e um óptimo 2007, com tudo o que desejarem. Volto em Janeiro.)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

As barreiras da razão...





Hoje não me falem de dor
Levantei as barreiras da razão
Defini as palavras proibidas
Dor, não!
Digam do tempo, da chuva ou da bruma
Talvez do frio das noites
No conforto das casas aquecidas
Digam do mar
Que repousa em cachos de espuma
Diz-me tu, da vida
Não da tua nem da minha
Da dos desconhecidos que se cruzam
Na margem paralela do caminho
Conta histórias de outros tempos
De dias por conhecer
Enche-me de palavras os ouvidos
Das que despertam os sentidos
Sem limites nesta rota de ilusão
Hoje, dor não!



Foto by Lilya Corneli

domingo, dezembro 10, 2006

Existem os cavalos...





É certo que existem os cavalos
tranquilos no pasto
como se toda a liberdade fosse sua.
Serão as cercas apenas fios leves
teias, carícias sobre a pele nua?
Será que imaginam felicidade
no suave vegetar das suas vidas?
Não intentam fuga ou protesto
nem se agitam em vãs tentativas,
são a simples imagem da beleza
sopro do vento na margem esquecida.
Existem dentro da minha certeza,
feitos para o voo
presos na armadilha da vida.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O palácio




Certa noite, ele chegou com o rosto iluminado. Por onde teria andado? Já não fazia a si própria muitas perguntas, no cansaço daquela vida sem tecto. Pela rua se tinham encontrado e na rua viviam, se àquilo se podia chamar “viver”. Iam fazendo companhia um ao outro, tentando amenizar a dureza da fome, do frio, da incerteza do dia seguinte. Ela já não pedia mais nada, perdida toda a esperança que tinha tido, nalgum existir longínquo, vaga lembrança que escorraçava por tornar o “agora” ainda mais difícil.
Mas, naquela noite, ele sorria e até quis fazer amor. Há quanto tempo? No início, escondiam-se nos prédios em ruínas, nos vãos de escada desertos. Agora… o desejo tinha morrido nela e, pouco a pouco, ele desinteressara-se. Teria outras por aí… já isso não lhe importava.
Naquela noite, acumulou pedacinhos de felicidade, farrapos dos quais também já tinha desistido. Quis então saber porquê.

- Queres viver num palácio?

Riu-se. Aquele homem não tinha emenda, vivia perdido em sonhos. Mas ele pegou-lhe na mão e levou-a por um estranho caminho que, na noite de luar, lhe dava a impressão de abandonar o mundo real. Ouviu a voz dele.

- Chegámos. Vê!

O palácio ali estava. Abandonado, quase uma ruína. Mas belo. Podia imaginar jardins onde agora crescia a erva. Nas escadarias ladeadas de azulejos, viu-se princesa, como nos sonhos de outrora.
Ninguém por ali andava. Os companheiros da rua ali não entravam. Rindo e dançando ao som de uma orquestra imaginária, ela disse que sim. Viveriam ali. Enquanto fosse possível. Enquanto houvesse espaço para o sonho.

domingo, dezembro 03, 2006

Escritos da chuva (III)





Chove

Eu sei que chove
Lá fora no asfalto não há som de passos
É noite
Comigo caminham os inquietos
Os que sonham de olhos bem despertos
Os que esperam algo que não chega
Mítica mistura de desejo e esperança
Comigo vagueiam os que dizem loucos
Os muito lúcidos de olhos abertos
Os que não sabem se estão longe ou perto
Todos os que escutam na noite escura
A chuva a bater no asfalto deserto.


Foto by jaQb jacher

quarta-feira, novembro 29, 2006

Qualquer dia...






Mensagens
curtas
ditas em sincopado
emoção feita em pedaços
num quadrado.
Claras
ou subliminares
em papel de qualquer cor
traços de tinta escura
-Teu para sempre,
meu amor.

Românticas
plenas de melancolia
à procura de endereço
no grande mar do destino.
Alguém partirá o vidro
qualquer dia, qualquer dia…



Foto by Rebecca Parker

segunda-feira, novembro 27, 2006

No escurinho do cinema...





Colecciono momentos. Na verdade, porque não? Outros coleccionam selos, moedas, obras de arte. A minha colecção não exige investimentos, só algum treino de memória selectiva.
Coleccionar momentos é um pouco como guardar um filme da própria vida. Passado pelas salas de edição e montagem, porque os momentos que guardamos não são a exacta reprodução do real e sofrem uma inevitável selecção. Temos a tendência para enfeitar a vida ou, pelo contrário, para a depurar do que não desejamos recordar.
Se tiro algum prazer da minha colecção? Ah, sim, contemplo os meus momentos preferidos como se os projectasse num ecrã. E, por vezes, salto para dentro da cena e refaço-a. Como teria sido se… Roam-se de inveja, senhores realizadores de cinema!





Imagem: Mia Farrow em "A rosa púrpura do Cairo"

sábado, novembro 25, 2006

A minha Utopia





Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
(...)


José Afonso, Utopia



Foto publicada no Palavra puxa palavra

quarta-feira, novembro 22, 2006

Escritos da chuva (II)




Pesadelo


A casa tinha fotos nas paredes e nos móveis. Fotos antigas como lembranças daqueles que já tinham partido ou de infâncias perdidas em dias que, hoje, ela via como felizes. Olhavam-na numa muda avaliação. Reprovação? Até as versões dela em molduras diversas pareciam estranhá-la. A chuva batia nos vidros e nem a sensação de conforto a impedia de se ver encerrada nas paredes da casa. A claustrofobia só era cortada pela luz que entrava pela nesga da porta que teimava em deixar aberta, como uma possibilidade de escapar.
Sabia que, lá fora, o ambiente lhe seria adverso. Enfrentar tempestades nunca tinha sido o seu lado forte. Mas os olhares das fotos não a largavam. E a chuva chamava-a, numa melopeia que a atraía. Sorriu a todos os que a observavam, mudos. Ali ou fora daquelas paredes, estariam sempre com ela. Correu para a porta que, lentamente, se ia fechando. Diluiu-se na luz que entrava e desapareceu. O estrondo do trovão abafou o barulho da porta que se fechou atrás dela.





Foto by sbdm zhu

domingo, novembro 19, 2006

Escritos da chuva (I)




Tudo bem!


Nem sequer é tempestade
Nem a chuva bate forte
Há talvez um vento norte
Que traz consigo a saudade

É mais um dia sem drama e a sorte está na vontade
de olhar um céu sem água.
Voam pedaços de mágoa sobre a rama das árvores.



Foto by Ewa Brzozowska

sexta-feira, novembro 17, 2006

Música para o fim de semana





Lila Downs celebrizou-se com o tema "Burn it blue", gravado em dueto com Caetano Veloso para a banda sonora do filme "Frida", que lhe valeu a nomeação para o Óscar de melhor canção original. Na altura, em 2003, Lila foi a primeira artista latina a participar na cerimónia de entrega dos prémios.
Com uma carreira iniciada em 1997 (com o álbum "La sandunga"), esta mexicana é filha de um cinematógrafo e pintor americano, de origem escocesa, e uma indígena mexicana de etnia mixteca. Foi despertada para a música com apenas oito anos, quando cantava com a mãe temas 'mariachi', bebendo na ancestral cultura mexicana grande parte da sua inspiração. Já adolescente, continuou os seus estudos de voz em Los Angeles e em Oaxaca City, acabando estes mesmos com um mestrado em voz e antropologia na Universidade de Minnesota.




Discografia:

•La Sandunga (1997)
•Yutu Tata / Árbol de la Vida (2000)
•La Línea / Border (2002)
•Frida (2002)
•Una Sangre (2004)
•La Cantina - Entre Copa y Copa (2006)


Deste último disco, fica o tema Agua de Rosas, com o desejo de bom fim de semana. E, na falta da água (de rosas, que a outra cai com força), ficam as rosas.






Lila Downs, Agua de rosas

terça-feira, novembro 14, 2006

Babel...




Palavras cruzadas
são ditas sem rima,
não se entende a fala
ou o som no papel.
E gritam por cima
ideias confusas.
Ruídos mesclados
tapam o cristal
da ideia clara,
mítica vibração
que nos aproxima.
E sussurros mansos?
Sons de carícia?
Sonhos contidos.
Perde-se a espera
nos gritos do dia
da vida quimera.

Não se entende a fala
ou o som no papel.
Babel, Babel!



Foto by Maciej Knapa

domingo, novembro 12, 2006

Domingo




O sol da manhã entra pela janela, como se o mundo lá fora chamasse por mim. Hoje é um dia como qualquer outro, apenas mais um domingo no constante fluir do tempo. Não gosto muito de domingos. São estranhos dias parados, interrupções forçadas que nos deixam tempo de sobra para pensar. O sábado é preenchido, é o excitante início do fim-de-semana. O domingo traz-nos melancólicas manhãs e tardes sem fim. Mesmo que mil ocupações as preencham. O domingo é uma espécie de Natal dividido pelo ano. Tal como o Natal, tem algumas coisas de que gosto e muitas que me fazem sentir desconfortável.
Na verdade, não sei bem o que estou a fazer aqui, agarrada ao PC. Vou seguir o sol e caminhar até ao mar. No azul imenso, afogo as minhas interrogações de Domingo. E vem sempre uma qualquer resposta, nem que seja a certeza de que toda aquela água estará ali, para mim. Sempre? No sempre limitado das nossas vidas.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Sei lá...





Sei lá…
à procura de mim…
Será?
Ou apenas um trilho
caminho desvio
por onde vagueio
sem norte, sem fio
que a volta me indique
em busca do nós
que não sei se existe
Não sei…
se o dia virá
que me mostre o fim
desse divagar
por fora de mim
ou se essa busca
de tão insistente
é já só mania
que me leva assim
por cegos caminhos
tão longos
sozinhos.
E o meu eu aqui
bem dentro de mim…



Foto by Rafal Bednarz

segunda-feira, novembro 06, 2006

Pés descalços





Tratou cuidadosamente de tudo.
Escolheu o mais belo vestido guardado há tanto tempo no armário.
Pensou no penteado que lhe ficava melhor.
Ensaiou o toque de pintura que lhe realçaria o rosto.
Queria sentir-se bela.
Decidiu deixar os pés descalços.
Queria sentir-se livre.

Caminhou à beira-mar. Não sabia para onde ir.
Tinha cuidado de tudo menos do destino final. Ficava em aberto…
Sabia que tinha que ser longe da sombra protectora.
Olhou para trás. A mancha vermelha e calorosa chamava-a, num apelo confortável.
O mar estava ali perto e os pés enterravam-se na areia, num jeito quase voluptuoso.
Lentamente, seguiu. Passos hesitantes, pouco a pouco mais seguros.
Quando olhou novamente, a mancha vermelha era só um ponto perdido na lonjura.



Foto by Kenvin Pinardy

sábado, novembro 04, 2006

Manias





Regulamento: "Cada bloguista participante tem de enunciar cinco manias suas, hábitos muito pessoais que os diferenciem do comum dos mortais. E além de dar ao público conhecimento dessas particularidades, tem de escolher cinco outros bloguistas para entrarem, igualmente, no jogo, não se esquecendo de deixar nos respectivos blogues aviso do "recrutamento". Ademais, cada participante deve reproduzir este "regulamento" no seu blogue."

A Ana P. apanhou-me de férias e resolveu "maniar-me". Então, lá vão algumas das minhas manias mais inócuas (imaginem as outras…):

- Tenho a mania de ir ver o fim dos livros antes de os começar a ler. Corta a emoção mas prefiro não ter grandes surpresas…

- Tenho a mania de refilar altamente ao volante com os outros condutores. Um mau hábito que já me causou alguns dissabores…

- Quando estou preocupada com alguma coisa, tenho a mania de falar sozinha. Um destes dias internam-me, de certeza…

- Tenho a mania das botas no Inverno e das chinelas no Verão. Digamos que a meia estação é que é uma chatice…

- Tenho a mania dos gatos. Não posso viver sem eles. Por isso, tenho dois em casa e deixo aqui a foto do mais velho que tem o nome de uma das minhas paixões: Van Gogh.


A quem vou pedir que conte as suas manias:

Amazing
Bia
Cris
Miudaaa
Pitanga


Foto by vida de vidro

quarta-feira, novembro 01, 2006

Globalizações...





Entrei e esperei um pouco pela habitual pergunta:

- Deseja beber alguma coisa? Já deseja encomendar?

Sem que tenha uma especial simpatia pelos holandeses, reconheço o seu respeito pelo ritmo de quem entra num restaurante ou num café. Entrou, tem todo o tempo do mundo para escolher e ficar a conversar, se lhe apetecer. Até aqui, em Amesterdão, cidade global por excelência, caldeirão de culturas cuja “sopa” resulta em algo excitante e atractivo.
É nesta classificação de “cidade global” que entram as minhas interrogações. Porque há uma “globalização” de que gosto e uma GLOBALIZAÇÂO que detesto. Gosto de encontrar uma marroquina que foi trabalhar em Amesterdão e cujos pais vivem em França. Gosto de a ouvir falar com uma canadiana que se prepara para partir para África com um grupo de amigos. Gosto que, quando sabe que sou portuguesa, encontre no seu vocabulário um sonoro “Obrigado” acompanhado dum lindo sorriso. Gosto que o restaurante seja de comida mediterrânica e que lá oiça falar italiano, francês, sei lá mais o quê…
Mas… não gosto, certamente, que a marroquina sirva à mesa, eu e a canadiana sejamos servidas. Porque existe aqui um padrão que se repete de restaurante em restaurante. Também não gosto que, porque o seu nível de vida lhe permite, a canadiana esteja instalada num dos melhores hotéis da cidade e a maior parte dos que, como eu, são oriundos de países "pequeninos" em tudo, estejam num “limpinho mas pequenino” com aqueles mínimos que o espírito económico holandês nos dá. Porque, afinal, todos querem ficar a dois passos do Museum District e relativamente perto do centro e aí os hotéis são caros. Exigências, exigências…
Serão os contrastes que se repetem nesta e noutras cidades tão atraentes como esta, efeitos perversos dessa tal GLOBALIZAÇÂO que detesto? Não tenho exactamente respostas. Mas, sem dúvida, isto deixa-me a pensar depois do primeiro deslumbramento do contacto mais estreito com esta cidade linda que só conhecia de passagem.




Foto by vida de vidro

terça-feira, outubro 17, 2006

Excertos de uma longa lista e um adágio





Comecemos com a palavra distância. Juntemos-lhe inevitável:

- A distância é inevitável

Uma frase a pôr na minha lista negra. Digamos que inevitável é a morte, o resto tem a ver com a nossa vontade, o nosso arbítrio.

E se agarrarmos a palavra vida e juntarmos assim:

- A vida é assim

A lista negra aumentou. A vida só é assim (seja lá assim o que for) se quisermos que o seja.

E depois vamos compor qualquer coisa:

- Tudo se comporá.

Desta vez a lista transborda. Compor só mesmo se significar criar. Remediar, pôr paninhos quentes, suavizar o que dilacera, isso não!

É desta forma que a lista negra de palavras e frases feitas se vai enchendo e me põe com aquela “telha” que me faz repetir vezes e vezes as minhas músicas de “curtir fossa”. Tenho uma, de eleição, que repito vezes sem fim até que outras palavras me ajudem a construir uma contra-lista (esta palavra não existe, mas fica bem aqui). É o adágio de Albinoni. Fica aqui a tocar, hoje. Porque já encontrei outras palavras para uma lista… azul, só pode ser!

Esperança que vai bem com construir:

- A esperança constrói o futuro.

Amor que deve rimar com alegria (não, com dor não!):

- O amor é a alegria da vida.


E ficamos por aqui hoje que, de frases feitas, negras ou azuis, estamos conversados. Restam uns reflexos de mim, como cores esbatidas num espelho de água.





Foto by vida de vidro



[... e vou gozar os meus últimos dias de férias deste ano. Devo voltar lá para o início de Novembro. Beijos, muitos.]

sexta-feira, outubro 13, 2006

O bater do coração






Corre o tempo
e tudo muda
o vento que traz a dor
e o riso que alimenta
o bater do coração.
Passa a vida
e na esquina
após cada mutação
existe um outro local
tão diverso e tão igual
onde o ciclo recomeça.
Mas a venda da ilusão
muda as cores
muda a emoção,
sendo que tudo é tal qual.
E o tempo que não pára
vai mudando sem mudar.
Riso e dor trazem consigo
o mesmo bater trocado
no ritmo do coração
e aquele vento antigo
que nos coloca na esquina
duma nova mutação.



Foto by B Berenika

quarta-feira, outubro 11, 2006

Em terras do Mirandum





“E era aquele concerto, uma sinfonia em tons e sons, a contrariar aquele calor todo. Gritos de uma gaita-de-foles, com o seu fôlego a correr pelos fraguedos (…) com ritmos marcados nas evocações antigas de sonoridades celtas que parecia sempre terem ali estado”

“ I era aquel cuncerto, ua sinfonie an tons i sons, a cuntrariar aquel calor todo. Gritos d’ua gaita-de-foles, cun l seu fôlego a correr puls fraguedos (…) cun ritmos marcados nas eibocaçones antigas de sonoridades celtas qu’até parecie que siempre habien alhi stado”

Jorge Castro, in Havia Trigo (Habie Trigo)
Ed. bilingue – tradução para mirandês de António Bártolo Alves




Terras de extremos. De pedras e árvores antigas. De vales escavados em rudes escarpas e dum rio que neles passeia a sua majestade ou se faz pequena serpente de água que nos cativa o olhar. De paisagens que nos esmagam e cortam a respiração. De calor que nos abrasa e frio que nos remete para o quente das lareiras na intimidade mesclada de aromas das alheiras, dos chouriços, das ervas, do mel. Nove meses de Inverno e três de inferno, diz quem por lá vive…
Terras onde se guardam rituais antigos, repetidos, relembrados, povoando a imaginação dos mais novos e os medos ancestrais dos mais velhos. Tudo é transmitido em palavras, sons de tambores e gaitas de foles, sabores que se aprendem nas velhas cozinhas. Tudo é tão diferente e afinal tão enterrado nas nossas raízes que uma língua que é nossa e não é, brotou e cresceu falada por gente áspera mas doce, de anedota brejeira que sai em desafio rápido à rudeza da vida. Terras lá bem longe dos que vivem virados para o mar. Bom será lá ir, para saber de Portugal mais do que o quotidiano nos ensina.





Foto by vida de vidro

segunda-feira, outubro 09, 2006

Manhã de sol incerto






É nas manhãs de sol incerto que encontro a vida suave das árvores que me fitam, imóveis. E o canto ligeiro dos pássaros, quase inaudível para quem não está atento.
Existe um quase silêncio quebrado pelos passos de algum caminhante que talvez queira só olhar as folhas que começam a cair. Ou, quem sabe, talvez aproveite a quietude da manhã para se conseguir ouvir.
Quando o sol começa a querer afirmar a sua presença e a hora avança nos passos apressados e no ruído dos carros que chegam, é altura de partir. Até as árvores já perderam o seu ar de confidentes, sabedoras de segredos antigos. Vão entrar na rotina do dia, simples árvores que quase ninguém olha. Estarão aqui numa outra manhã de sol incerto, esperando quem com elas fala, em silêncio.




Foto by vida de vidro

segunda-feira, outubro 02, 2006

A árvore e a borboleta





Para ti não serei árvore
não terás o meu tronco como apoio
nem as raízes que suportam tempestades.
Não encontrarás em mim a seiva
que desperta a força de viver.
Se me quiseres borboleta
dançarei à tua volta o meu voo de mil cores
poisarei em ti as asas com um frágil bater
efémero como tudo o que a terra não prende.
Serei talvez borboleta
que no desejo de em ti permanecer
se une ao solo e cresce
no caule ondulante de uma flor silvestre.



Foto by Lilya Corneli



[Volto na próxima 2ª feira. Um bom fim de semana prolongado ou apenas um bom feriado para todos.]

sexta-feira, setembro 29, 2006

Este sentir azul...





Que caia o silêncio em que cabe tudo o que não é dito. Palavras são meros sons, pálidos reflexos de sentimentos. Desnecessárias, tantas vezes.
Que caia o silêncio em que dois seres se projectam um no outro. As palavras não fazem a proximidade.
Que caia o silêncio porque é essa ausência de som, esse sentir azul que permanece nas horas em que muitos sons se fazem ouvir.
Que caia o silêncio… assim!





Foto by Alexander Bogdanov

terça-feira, setembro 26, 2006

O voo





Lembro-me de um azul infinito que nos acolhia o voo. Rotas cruzadas por um vento que nos aproximou, voámos naquela luz que brilhava sem cegar. Sabíamos da terra onde pousávamos, mas o voo levava-nos a limites em que pensávamos ser um, rumando a um destino único.
Lembro-me, sim. Daquele planar suave sob o calor do sol, da euforia frenética de alguns dias, até de alguns desvios do caminho e de quedas em voo picado. Lembro-me de tudo o que nos aproximou e afastou.
Por vezes, as rotas desviaram-se, da mesma forma como se tinham cruzado. Talvez sejam assim todos os voos. Reconhecemo-nos novamente como seres distintos, por momentos as almas deixam de tocar-se lá em cima, no azul que parece tornar-se finito, muito finito.
Talvez a luz já não seja tão brilhante. Não tenho nem terei nunca certezas. Talvez os ventos nem sempre soprem na direcção desejada. Mas o voo que fazemos juntos continua a ser um encontro de almas, nas rotas sem limite.





Foto by Jozef Zidarov

domingo, setembro 24, 2006

Dia único





Sei da distância
que me enche os olhos de bruma
e dos dias expectantes
lançados no tempo como as margens dum lago.
Sei da esperança
em cada regresso à casa do meu corpo
e da ternura
que tudo invade qual enchente de maré.
Sei de mim em ti
porque sabê-lo é o espelho da tua presença em mim
e do que em ti grita
no silêncio interminável das noites brancas.

Só não quero saber do amanhã
dos dias que correm na orla do tempo.
Seja hoje o dia único
se no meu corpo se fechar o arco dos teus braços!



Foto by M L

quinta-feira, setembro 21, 2006

Olhando a encruzilhada






Conhecia aquela mulher. Parada, indecisa, numa encruzilhada da vida. De alguma forma, sabia que já ali estivera. Talvez aquela mulher fosse só a projecção de si própria. No passado ou num futuro próximo?
Naquele momento, não conseguia perceber o final do caminho que percorria. Talvez fosse apenas um daqueles caminhos que não levam a lado nenhum mas entroncam noutros e esses noutros… Simplesmente seguia-o porque parte do que lhe coloria a vida estava lá e a cor era essencial. Sempre fizera parte dos seus pesadelos viver a preto e branco ou, ainda pior, a cinza.
Olhou de longe a mulher na encruzilhada. Era inevitável que um dia lá voltasse. Provavelmente escolheria a travessia do deserto, no fim do qual nascem os caminhos coloridos. Mas para conquistar a cor, é necessário completar a travessia. Quantas vezes teria a capacidade de o fazer?





Foto by Marcin Klepacki

segunda-feira, setembro 18, 2006

Só um laço de ternura





Amor deveria ser
Sem limite, sem horário
Sem ponto para marcar
Um sentimento arbitrário
Sem regras a obedecer
Sem motivos p’ra chorar
Nem nós para (nos) prender

Amor deveria ser
Só um laço de ternura
Deslizando com prazer
Pela curva da cintura

Amor deveria ser…
Mas não é. O que fazer?



[arbitrário: que provém de arbítrio; que não obedece às regras
Dicionário Primberam da Língua Portuguesa ]



Foto by Andreas Allgeyer

sábado, setembro 16, 2006

O vestido azul





Demorou a preparar-se. Banho, cremes, maquilhagem. Ia olhando o vestido azul pousado na cama. Não resistira. Chamava por ela na montra da loja. Olhou-o de todos os ângulos, pegou-lhe com cuidado e vestiu-o. Perfeito no seu corpo. Como se uma costureira o tivesse feito por medida.
Olhou-se no espelho. Gastara quase todo o dinheiro que tinha mas estava pronta para a sua grande noite. Sentou-se e esperou. Ainda não era a hora certa. Esperou mais e mais. O relógio, por fim, marcou a meia-noite.
Pôs a música a tocar, foi buscar o champanhe e dançou, dançou, dançou. Abriu prendas que comprara e fez a festa até adormecer, linda no seu vestido azul.
Estava só naquele quarto minúsculo, numa cidade estranha. Tinha vinte anos.





Foto by Beliz Kocak

quarta-feira, setembro 13, 2006

Malmequer no escuro...





Mal me quer, bem me quer…
Na escuridão quem vai saber?
Pétala sim, pétala não…
Desfolho-as na minha mão
E dê a sorte o que der
Só vou ficar intrigada
Será muito, pouco ou nada?



Foto by Jean Sébastien Monzani

segunda-feira, setembro 11, 2006

Dádiva de mim





“Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. Vi que era pão que procuravam ou que não era pão que procuravam, Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro, mar, criança, rapariga, mulher. A cada palavra minha eu ia-me esvaziando. Era a vida, a minha vida que se me ia. (…). Vieram mais, muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, deus. E caí redondo no chão.”

Ruy Belo , excerto de “Serviço de abastecimento da palavra ao país”




Todos os dias espalhamos palavras à nossa volta. De circunstância. De amizade. De zanga. De amor. De paixão.
Teremos consciência da força que uma palavra pode ter para alguém que a quer ouvir? O sentido do que falamos ou escrevemos está sempre sujeito a interpretações diversas. Mesmo para os amigos mais próximos.
As palavras, quando as dizemos, são um som a que se convencionou dar significado. Quando as escrevemos são símbolos, por vezes totalmente inúteis, por aí deixados, como flores sem cor nem perfume. Há dias em que isso não me perturba. Outros há, em que quero que todas as minhas palavras façam sentido. Que ganhem cor, aroma, gosto. Que sejam dádivas de mim para quem as quiser receber.





Foto by Mareks Logins

sexta-feira, setembro 08, 2006

Sombras em céu claro






Vieste até mim no teu passo furtivo
Nos olhos tinhas a dúvida da distância
Sombras como nuvens em céu claro.
Como posso dizer que te conheço
Se só a ti conheço?
Como se sempre tivesse esperado
Os teus passos pisando o mesmo trilho.
Caçadores e presas somos
E o nosso tempo é breve.
Vê que o sol já começa a declinar
Apanha nas mãos os raios do poente
Afasta as sombras.
Habito o mesmo lugar da tua alma
E no trilho de sempre espero o teu corpo.



Foto by Ennio

quarta-feira, setembro 06, 2006

A outra metade





Metade frágil, metade prepotente. Metade competente, metade insegura. Metade segura, metade hesitante. Metade divertida, metade melancólica. Metade sol, metade lua. Metade verso, metade reverso.
Metade do rosto. Metade da alma.
A outra metade perdia-se no labirinto de si própria, nos esconderijos que cavava dentro de si, como grutas concêntricas nas quais ninguém penetrava. Nem ela.





Foto by Sandrine Huet

segunda-feira, setembro 04, 2006

A brisa do Outono...





"Nos teus olhos translúcidos
ainda passam sombras
que a ternura afasta lentamente
(…)
Não sentes o mar, as neblinas
o castanho doirado das folhas
com laivos de agonia?
Vem, é outono"


José Carlos Teixeira, in O Voo Interdito para o Sol



O sol arde mas sinto algures a brisa do Outono. Talvez porque o esplendor das cores já começa a transformar a paisagem em tela de algum pintor desconhecido. Talvez porque os dias já perdem a luz mais cedo, dando ao crepúsculo toda a magia que a crua claridade do Verão lhe nega. Talvez porque os ciclos da vida recomeçam, após o breve intervalo que a ilusão das férias carrega consigo.
Nem sempre foi Outono. Mesmo quando as folhas castanho-avermelhadas tingiam as árvores para depois amarelarem e acabarem pisadas no chão. Lembro-me que não era Outono, apesar do vermelho se ir ausentando dos poentes e da frescura da brisa nos arrepiar os braços. Era um tempo suave, um tempo mágico. Não era a antecâmara do Inverno.
Hoje sei que em breve será Outono, o Inverno chegará a seu tempo. A natureza prepara-se para, também ela, iniciar o seu ciclo de renovação. Os dias ardentes darão lugar à frescura pela qual o corpo já anseia, num tempo em que os nossos olhos se prendem na doçura dos ocasos, antes que o vento se torne agreste e nos faça recolher no nosso casulo. Invoco o sol para que o pó doirado da magia se espalhe no ar e faça durar os dias ternos que nos afagam o corpo.





Foto by Marcin Klepacki

sexta-feira, setembro 01, 2006

My beautiful butterfly...




Minha linda borboleta
beleza ressuscitada
de múltiplas cores aladas.
Cavalga o dorso do vento
à hora em que o sol declina
lança as asas no horizonte
naquele momento encantado
em que o silêncio domina.
Sustenta em ti a minh’alma
que se expande sem limite.
Breve é o instante do voo
mas percorre o infinito.



Foto by Zosia Zija

quarta-feira, agosto 30, 2006

Variações com paisagem e barco





As nuvens
As nuvens a tocarem o mar
As nuvens a tocarem o mar no horizonte fechado
As nuvens a tocarem o mar no horizonte fechado sobre o barco
As nuvens a tocarem o mar no horizonte fechado sobre o barco da vida.
E o grito do silêncio.




Foto by Maciej Knapa

segunda-feira, agosto 28, 2006

O homem que inventou o mar





"O mar cheirava a uma vela inchada pelo vento, onde a água, o sal e um sol frio se uniam"

Patrick Süskind, O Perfume


O homem ouvira falar do mar. Um daqueles viajantes que carregam consigo sonhos em forma de palavras, tinha dito das ondas, do azul, da imensidão de água. Falara dos peixes que o habitavam, contara lendas de espantar e dissera que os homens dos mundos à beira mar os pescavam, horas e horas sentados nos locais onde a água vinha tocar a terra.
Aquele homem vivia sozinho, num país árido, quase deserto. Tinha envelhecido a sonhar com o mar. Queria apanhar um peixe, ser da água, vivo, brilhante. Queria que as ondas o molhassem, lhe refrescassem o corpo, queria dar-se àquela água que, tinha a certeza, o esperava. A sua cana de pesca era um pau fino que todos os dias afagava, imaginando o belo peixe que nela dançaria. Até talvez o desse depois ao mar, onde afinal pertencia.
Um dia partiu. Caminhou na secura desértica sem que encontrasse nem vestígios de água. Olhou a planície à sua frente e desejou a frescura do mar que o viajante lhe descrevera. E avançou, com uma certeza profunda.
Contam, naquele país longínquo, que ninguém mais viu o homem. Na planície, encontraram o pau que sempre o acompanhava. Na sua ponta, já seco do sol tórrido, estava um peixe que alguns reconheceram das histórias que tinham ouvido.





Foto by Maciej Knapa

sábado, agosto 26, 2006

Se...





Se soubesse escrever um longo poema
um rio de palavras transbordando as margens
falar da vida do amor ou da morte
de paixões ardentes ou desejos simples.
Se soubesse agarrar o fio do que sinto
ou apenas sem pudor atirar à sorte
sons que dissessem das vezes que minto
e das que mentindo me mostro.
Ser fingidor ou poeta
como se estivesse inscrito no destino
coisa em que nem acredito.
Se arrancasse de mim ais de dor sentida
ou sátiras setas que acertam o alvo
ou a pura alegria do milagre da vida.
Se soubesse ser eu nas palavras que escrevo
e todos os outros que em mim se inscrevem.
Se ser poeta me fosse concedido
por um dia ou uma hora de ilusão.

Seria esse tempo de fazer amor contigo
que o poema quer-se vivo!



Foto by Beda

sexta-feira, agosto 25, 2006

Etiquetas

Fui etiquetada pelo Herético que, ainda por cima, fez uma batota incrível na resposta...:)). A sério, agradeço a "cristalina vibração" e fico sensibilizada por me ter indicado (há-de haver ocasião para retribuir…). Quanto às minhas “etiquetas”, acho que o que se segue é uma parte do que quem me me conhece sabe que eu sou.



1- Considero que a intolerância e a discriminação, em todas as suas manifestações, estão entre os piores males da humanidade.


2- Preocupo-me com o que me rodeia. Todo o tipo de injustiças me “tira do sério” como diriam os nossos irmãos brasileiros.


3- O tipo de paisagem em que me sinto bem tem que incluir água (rio, mar, lago, seja o que for).


4- Muitos livros me marcaram. Um de que me lembro sempre, em especial: A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera.


5- A minha música é a música do mundo, aquela que incorpora as raízes de uma ou várias culturas. Amo o jazz e todos os seus cruzamentos com outras influências.


6- Gosto de cinema, embora a maioria do que se faz neste momento (efeitos especiais e pouco mais) me diga pouco. Filme de culto: Casablanca. Realizadores preferidos: Clint Eastwood, Martin Scorcese, Jean-Pierre Jeunet, Roberto Benigni.

E vou passar as etiquetas para:

diabinho ( quem se interessa por um mail em branco, tem concerteza muito para dizer de si próprio)

Diafragma (para conhecer um pouco mais os gostos, para lá da fotografia )

Minda (simples curiosidade, sem razão óbvia)

Magia ( uns pozinhos de perlimpimpim e já está…)

Amazing ( agora é que vamos ficar a saber mais coisas… :))

Daniel Sant’iago ( deve odiar estas cadeias tanto como eu, mas uns jogos de palavras resolvem isto num instante…)




Fotos retiradas do Google e de autor desconhecido à excepção da paisagem do ponto 3 que é da autoria de vida de vidro

quarta-feira, agosto 23, 2006

Azul, azul...





Lembrava-se dos cortinados azuis que ondulavam na brisa que vinha do exterior. Seriam azuis mesmo ou era apenas a necessidade que tinha de fantasiar aquela fronteira entre o espaço confinado do quarto e o mundo lá fora? Azul era tudo o que sonhava. Azul era a cor que lhe adoçava certezas amargas. Por isso, quando dizia “azul”, duvidava sempre um pouco. Talvez os sentidos a traíssem, talvez manipulassem a cor. Quem saberia dizer?
Lá fora, ela imaginava vermelho. Quente e agressivo. Mas sabia que não era vermelho. E até sabia que o vermelho paixão invadia o quarto em ondas sucessivas que acabavam por a levar até uma doce letargia … azul.
Passou a classificar os dias numa escala de cores de que só ela sabia o significado. E a procurar o caminho de luz e mistério que a levava à fronteira dos dias azuis.





Foto by Sophie Thouvenin

segunda-feira, agosto 21, 2006

Guardador da luz cega





Naqueles dias, parecia aos seres da floresta que não havia luz no céu. Na verdade, aquele disco do céu que fazia as folhas brilhar e os aquecia, só tinha aparecido cinco minutos em cada dia. Era pouco e a angústia dos dias cinzentos começava a abater-se sobre os habitantes minúsculos do reino verde, aqueles que os homens não vêem quando os seus pés pisam pesadamente as folhas secas.
Reuniram-se os filósofos, os poetas e os cientistas. Os artistas assistiram, sem conseguir largar o que estavam a criar. De vez em quando, diziam de como a sua obra transmitia melancolia. Sem o disco dourado, tinham perdido a alegria que espalhavam em sons, em cores, em formas. Era preciso fazer alguma coisa. Se conseguissem guardar a luz daqueles cinco minutos…
Em plena reunião, um dos mais jovens entrou gritando que tinha encontrado um objecto estranho e muito grande. Parecia ter as cores do disco do céu. Talvez um dos que chegam de fora (chamavam assim aos homens para quem tudo ali era estranho) o tivesse deixado. Talvez o próprio disco do céu o tivesse enviado. Como podiam saber?
O objecto era belo e tinha uma cor quente semelhante à do disco dourado. Estava orientado para o local de onde a luz e o calor costumavam vir durante cinco minutos. Esperaram e, à hora habitual, os raios atravessaram aquela cor intensa e pareceu-lhes que toda a superfície do objecto brilhava e ficava mais quente. O mesmo aconteceu no dia seguinte e no outro e no outro…
Chamaram disco da terra àquela superfície que parecia ficar cada vez mais quente e cor de ouro alaranjada, como se toda a luz do disco do céu ali se concentrasse. Fizeram pequenos abrigos debaixo daquele disco quente. Nos cem dias em que o sol só brilhou cinco minutos a alegria não fugiu da floresta, enquanto as árvores e os arbustos bebiam toda a água necessária e se preparavam para o novo reinado do disco do céu.





Foto by naturalíssima (obrigada, Daniela, por criares imagens que são uma inspiração)

sábado, agosto 19, 2006

Ciclos





Para ela, a vida desenvolvia-se em ciclos que nunca terminavam abruptamente. Iam terminando, numa sucessão de sinais a que estava sempre (demasiado) atenta. Assistia, quase como espectadora, às suas reacções quando um ciclo começava a acabar. Porque todos os finais têm um começo. Ouvia os sons, sentia o bater do coração, reparava no cansaço, no aborrecimento… sinais. E um dia, que parecia súbito mas não era, decidia terminar o ciclo. Nessa altura, nada a fazia já voltar atrás. Tudo o que a prendia a um local, a uma pessoa, a uma “forma de vida” deixava de ter significado. Acabara o ciclo. Sofria? Claro, ser espectadora não a impedia de estar no palco da vida.

Hoje, resolveu terminar um ciclo. Os sinais já se faziam ouvir há muito e demasiado alto.
Parte dela ainda está dentro da personagem anterior. E sofre. Outra parte vive já num novo ciclo que durará exactamente até que os sinais lhe gritem que é altura de acabar.





Foto by António Delicado

quinta-feira, agosto 17, 2006

Só uma flor





Não quero flores. Porque me hás-de dar flores como se estivesses a ornamentar uma relação que, a viver, é só mesmo do que as nossas bocas não dizem? Não quero enfeites, nem palavras de múltiplos significados. Quero a verdade. Sobre a verdade não são necessárias flores.
Disse-te alguma vez que queria algo diferente? Se disse, foi num dia em que o sol me fez acreditar que me podias dar flores plantadas, vivas, e não cadáveres em potencial. Muito sol afecta o cérebro. Nada de flores, portanto. Hoje há nuvens no céu e estou em estado de lucidez.
Quando um de nós for embora, dá-me uma flor. Só uma. Coloca-a numa jarra, no local mais solitário que encontres. Concordemos numa coisa: enquanto ela viver, amar-te-ei. Quando morrer, guardar-te-ei para sempre numa gaveta da alma que só abrirei no dia em que me pareça que o sol brilha novamente.





Foto by Petrova

terça-feira, agosto 15, 2006

O dia amanheceu





Hoje o dia amanheceu igual
como todos os dias em que fui feliz.
Não sei qual o pássaro que cantou na árvore,
aquela das folhas que apanhei outrora
e pus no livro de poemas que lia,
naquele tempo em que a poesia chamava.
E liberta de todas as amarras
eu ia.

Hoje o dia amanheceu e espreitei
as folhas da árvore que dançavam ao vento.



Foto by Ennio

domingo, agosto 13, 2006

Barco ancorado





Falo de uma rapariga. Igual a todas as outras, sem nada muito especial que a distinguisse. Muito jovem. Não tinha planos, não acalentava grandes ambições. Só queria que a vida não se enchesse de dias iguais, plenos de tédio. Talvez fosse o que mais temia: a rotina, a falta de surpresas, o contemplar de um futuro completamente previsível.
Fez tudo o que esperavam que fizesse. Estudou, empregou-se, casou, teve filhos. Começou a sentir que o leme da vida lhe fugia das mãos e que a rota já estava traçada. Enquanto os filhos precisaram dela, encontrou um motivo para nada fazer que pudesse desviar o curso do destino.
Um dia sentiu-se verdadeiramente barco ancorado num porto. Um pequeno porto aconchegante, agradável mas de onde se via o mesmo horizonte, todos os dias. Tudo o que temia se tinha concretizado. E ela queria partir, por mais que lhe falassem dos perigos da viagem e de como era invejável o seu porto de abrigo.
Embarcou em algumas viagens mas voltou sempre ao porto que, em cada regresso, lhe parecia ter marés mais agitadas. E aconchego nenhum. Hoje, ela continua a ser um barco ancorado, mas num porto agreste. De vez em quando parte em busca de uma baía que, por uns tempos, sonha ser o seu porto de abrigo.





Foto by Luther Bash

quinta-feira, agosto 10, 2006

No país da guerra





O menino do país da guerra acordou com o estranho silêncio que pairava sobre a cidade. A mãe teria ido procurar algo que comer. Tinha que a esperar ali. Naqueles dias, sair das ruínas onde vivia era perigoso. Tudo era perigoso. Nunca mais tinha visto os seus amigos de brincadeiras. Perguntava à mãe por eles e ela só o olhava com os olhos muito abertos e secos. Não a via chorar há tanto tempo… E quase tinha saudades dos dias em que chorava por mais uma partida do pai ou porque tudo era difícil demais na vida que levavam. Agora, já nem se lembrava do rosto do pai.
Espreitou e não viu mais que escombros. Já não conseguia orientar-se na cidade. Todos os pontos de referência tinham desaparecido. Só ruínas e corpos que ninguém reclamava. Reparou naqueles objectos de metal espalhados. O pai tinha-lhe dito o que eram e como funcionavam.
Tinha fome, tinha muita fome. Não podia chamar, gritar, sabia que não devia atrair atenções. Chorava baixinho, com aquele aperto no coração que lhe acontecia sempre que não via a mãe. As lágrimas silenciosas correram quando começou a percorrer as ruas desertas, quando entrou no que restava das casas, quando, esquecido do perigo, gritou pela mãe. A voz encontrou eco nem ele sabia onde. Mas ninguém respondeu. Nem a mãe, nem os moribundos, nem os que costumavam procurar por toda a cidade um pedaço de pão. Nem os tanques, nem as bombas.
Sentou-se no chão e, em silêncio, chorou todas as lágrimas que tinha. E, de olhos e coração seco, esperou. Apanhou um dos objectos de metal e agarrou-o, na mão pequenina. Eles voltariam.





Foto by verboomz



[Não aprovo vinganças. Entendo desesperos e, sobretudo, anseio pela paz sem destruição da dignidade de ninguém.]