quarta-feira, outubro 29, 2008

Por vezes penso que...




Estamos na vida de acordo com conceitos aos quais atribuímos um valor. Ideias, regras. Positivas e negativas. Céu e terra. Nuvens e lama. Branco e negro. Veludo e serapilheira. Amor e sexo. Vida e morte.
Vamos assim até ao limite de nós próprios. Do nosso corpo. Ou da alma? Só então corremos entre céu e terra. Provamos a chuva das nuvens e espojamo-nos na lama. Sentimos a claridade do branco e o medo das trevas. Pomos sobre a pele veludo e serapilheira. Amamos e fazemos amor. Ou apenas sexo. Vivemos e morremos.

domingo, outubro 26, 2008

Instável jangada



Já nos meus olhos não encontras a doçura da terra
após a chuva
nem o sonho reflexo de seres além
daquilo que és.
Nestes dias tão convexos, incertos somos tu e eu
dos rumos que a vida nos reserva.
Não diremos nem verdade nem mentira
e no equilíbrio de uma instável jangada
partimos à procura do tempo que se esgota.
Não sei falar-te mais o que ficou por dizer
palavras e dias de encantos perdidos.
Escondo o poema de mim e do querer
e na distância nublada de mágoa
sem me entender te digo: meu amor.

quinta-feira, outubro 23, 2008

(e)liminar


eliminar
a parte de um todo
separar o que não pode
ser partido
sublimar o grito do parto
de mim
de ti
no oculto som da palavra
secreta
subliminar

segunda-feira, outubro 20, 2008

Afirmação




(…)
Quero-te na orla afiada
da palavra que te envolve
e em arco me alcança.
(…)

Agosto 2005



É no silêncio por dentro da pele que te procuro
E te nomeio como outrora
Sem que a força da palavra silenciada
Expluda em cascata de ilusão
Não te quero pelo nome que te dei
Quero-te. Só.

sábado, outubro 18, 2008

Sem querer




Terá havido um dia em que o amor se soltou. Entre os homens desta era. Sem querer, sem querer… Como podia espalhar a peste que nos quebra por dentro, perseguimo-lo. Acho que morreu. Sem querer, sem querer… Que fazer, agora? Só me falaram de um ressuscitado. Mas esse pertence ao reino dos céus e não me consta que consiga corporizar-se. Não nestes tempos.

quarta-feira, outubro 15, 2008

Trilho antigo



Enfrento aquele trilho antigo
onde os pés magoados já sabem os escolhos
espinhos conhecidos a evitar
Levo comigo a antiga mala para as cinzas
de fogueiras altas
os ecos de risos nas montanhas e um saco
cheio de enganos
Pesado é o lastro que em mim se cola
sem afago de partilhas desejadas
sei que o caminho não se adoça em verde relva
nem as pedras jorram água sobre as chagas.

Por isso hesito no passo
e aplaino veredas onde se escondem mágoas.

domingo, outubro 12, 2008

Ataque de lucidez



Dorme a casa como um conjunto orgânico do qual só ela destoa. Naquelas horas de silêncio, a lucidez atinge-a duramente sem que se possa defender. Gira sobre si própria, procurando o refúgio do sono. Sem resultado, porque tem a perfeita noção de se estar a observar de fora do seu corpo. Menina, perguntara uma vez à mãe se era possível ser actor e espectador, ao mesmo tempo. O ar de espanto e inquietação da mãe ainda hoje a fazia sorrir. De quem teria herdado aquela quase maldição de se ver (e aos outros) como se não estivesse lá, como se apenas observasse?
Eles dormem. Eles, os outros dentro da casa. Gostava de saber os seus sonhos, os que não contam e os assombram como a ela, pelas horas da noite. O pensamento voa para outra gente que àquela hora também dorme, gente que cruza a sua vida e com ela interage. Saberão como ela os vê, por vezes? Sente-se desconfortável, como se estivesse a trair pessoas que ama. Na verdade é a si própria que trai, à sua capacidade de se dar sem limites, ao seu desejo de acreditar no que de bom os dias trazem. Será sempre assim. Já lhe disseram também que não existe remédio para ataques de lucidez.


[Agradeço do coração à Mateso , à Sombras do Fim do Dia, à hfm e à Nana, o mimo que me ofereceram. Podem ver o que foi e a quem passo este prémio no Vemos, ouvimos e lemos. ]

quarta-feira, outubro 08, 2008

somos o que somos




somos o que somos
na teimosia de fechar à luz dos dias
a porta da nossa casa
é a sombra que se espalha pelos cantos
que cremos iluminados por fugazes fogos-fátuos
e a vida foge
num eterno carrossel de tempo escasso
nada perdura, nada é
se falhamos o caminho para a raiz das coisas
e das gentes
que nos tocam, nos olham sem ver
somos o que somos
sabendo que o tempo corre lesto
e talvez o amanhã já não permita
de outro modo ser



[Para vos desejar bom fim de semana, está no Vemos, ouvimos e lemos o meu olhar sobre o Algarve que não é só praia. Convido-vos a dar um saltinho até lá.]

domingo, outubro 05, 2008

Há três anos e talvez hoje...




Sol, sempre. Sol quase impiedoso para a terra que aguarda, ansiosa, que a água a salve da sua condição desértica. Sol que, no entanto, nos acaricia em cada dia, fazendo-nos desejar que fique.
O sol leva-me para aquela praia, a mesma, a que acumula, como tesouros, recordações de muitos anos. Na esplanada, o aroma do café mistura-se com aquele agridoce cheiro da maresia. O leve ruído do mar e o calor suave que envolve o corpo distraem-me da leitura programada. Ali, as palavras do livro valem menos que o momento da vida. Poder-se-á dizer que a felicidade simples é isto, uma manhã de sol numa esplanada à beira mar. E as recordações que me trazem o saber de momentos futuros, perante aquele mar que me reconhece. Sinto-me próxima daquele “sempre” que poderá ser finito, tão finito como a linha do horizonte, da qual não consigo avistar o termo.

5 de Outubro de 2005 - memórias do último dia de "Verão"

quinta-feira, outubro 02, 2008

O caminho da água



Em cascata
em remoinho
em rápidos de queda livre
a água revolve e arrasta
o leito outrora suave.
Talvez corra, talvez pare
talvez encontre morada
onde repouse e se deite.
Talvez de doces amantes
reflicta dores e sorrisos.
Talvez de mágoas recentes
engrosse o caudal de lágrimas.

Talvez corra em remoinho
Talvez acolha sorrisos
Talvez chore com os amantes
Talvez corra
Talvez pare.


Março 2005



[A partir de hoje, está reactivado o Vemos, ouvimos e lemos, agora com comentários abertos]