
Aquela terra tem cheiro de marasmo, de gente parada em vidas sem chama. Talvez seja só a minha reacção, química negativa que eu tenho com o chão onde nasci. Talvez renegue raízes, porque reconheço minhas outras terras, não aquela.
Naquela terra o calor sufoca no Verão e, no Inverno, fustiga-nos o frio . Terras longe do mar, diz-se. Mas não existe essa lonjura toda.
Dizem-na bonita, os que a vêem de fora. Talvez, se não penetrarmos no seu interior, seja possível achá-la bonita. Tem um rio, talvez agora mais um fio de água. E há uma qualquer beleza especial nas terras que os rios atravessam. Talvez…
O meu caminho ali é sempre igual, entre a visita a quem decidiu ali repousar para sempre e a casa. A casa é como um cofre onde estão memórias guardadas. Memórias misturadas. Daquela bisavó que eu julgava que viveria para sempre. Uma doce memória, que arrasta outras não tão agradáveis. As minhas memórias de criança amada mas solitária. A querer entender os problemas dos adultos. As minhas memórias de adolescente que ali voltava, nas férias. E que revivia a realidade daquela rua estreita. Nas noites de Verão, da taberna do outro lado da rua, que é agora uma pastelaria, saíam os bêbados que iam desabafar desgraças no beco ao pé do quintal. Deitada, nas noites quentes em que o sono não chegava, ouvia-os invectivar a vida.
Por vezes, na casa ainda ecoa a memória de gargalhadas de crianças, abrindo as prendas do Pai Natal. Conseguiam até ouvir os sinos do trenó. Essas são as lembranças mágicas de um tempo feliz. Gostava de poder ficar só com essas e não ver, em cada canto da casa, outros dias, outras tristezas que me fazem ter para com ela um sentimento ambivalente.
É a casa, a única raiz que reconheço, mas está demasiado carregada de recordações. E de perdas. Como a vida.
[No
Palavra puxa palavra o tema foi
"Interior". Esta foto é da casa, a da minha infância e o texto foi escrito em Outubro 2005.]