segunda-feira, janeiro 29, 2007

Vento de ausência




Paira um vento de ausência
na luz velada de cada madrugada.
As manhãs são um manto de gelo
que veste a alma da terra
e há gotas de água que se colam
nas frestas disfarçadas da pele.
Penetram, magoam,
arestas de vidro em cada poro.
Não procuro sol
senão aquele que é o centro de mim
calor de certezas pequenas
finitas
que o meu voo não toca o astro
nem alcança horizontes sem fim.

sábado, janeiro 27, 2007

A passagem dos medos




Sempre tinha sabido da existência daquela passagem. Escura, ameaçadora, concentrando todos os medos. Tinha a certeza de que a vida a levaria por aquele caminho algumas vezes e que a travessia não seria fácil. Tactear, cair, procurar apoio, levantar. Era quase um guia para atravessar a passagem.
Na infância, visualizou fisicamente essa passagem, na velha casa. Era aquele corredor enorme que atravessava a casa de uma zona de claridade a outra zona de claridade. Um corredor escuro, escuro. E o quarto dela ficava no meio. Talvez tenha sido nessa época que aprendeu a atravessar a passagem dos medos.
Hoje encontra-se menos vezes nesse lugar escuro. Ou talvez tenha apenas aprendido a atravessá-lo, com a certeza de que alguma luz existirá do outro lado.




(Esta semana, no Palavra puxa palavra, a palavra era "MEDO")

quarta-feira, janeiro 24, 2007

A casa




Construíram a casa com alicerces de puro sentimento. Uma sala de palavras, um quarto de paixão. Recantos escondidos de ternura. E nela moraram, apesar de, por vezes, os ventos conseguirem uma brecha por onde entrar. Era então que a casa se tornava desconfortável, abanando por falta da solidez comum com que são construídas todas as casas.
De alguma forma, reparavam os danos, não poupando no amor. Talvez porque nunca souberam quanto duraria, a casa mantém-se. É uma espécie de abrigo, um refúgio conhecido e desejado. Não sabem bem onde fica, sentem-na algures no peito.

domingo, janeiro 21, 2007

País sentimento





Sabes que não sou bem eu
perdida no nevoeiro.
Sou alguém que em si se dobra
desdobra
em camadas
pedaços do corpo inteiro.
Não sou eu
num todo exacto
quem hesita no caminho
como se em labirinto
fosse ele transformado.
É alguém a mim ligado
sem fio
nem arame de equilíbrio.
Talvez alguém desterrado
do seu país sentimento
ou só alguém deslocado
naquele dia
naquele momento.

Volto, sim
invento o sol
que aquece os sentidos
e nos reflexos de mim
colo pedaços perdidos.


Foto by Ewa Brzozowska

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Música




Sonho de uma manhã de Outono.
Jazz vindo da alma ecoou na praça. Levada nos raios de sol, a cor concentrou-se onde o som irradiava. Cada nota acrescentou uma tonalidade, pintando tudo o que a música tocava.
Quando o músico se foi, pouco a pouco as notas caíram no chão, levando consigo as cores. O mundo voltou a ser a preto e branco.




(Esta foto foi escolhida por mim para a palavra Música no Palavra puxa palavra )

terça-feira, janeiro 16, 2007

(In)identidade





"Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus."


Álvaro de Campos, excerto de Passagem das Horas



Hoje senti-me só eu
Larguei a pele das personagens
Despi, uma a uma, camadas alheias
No espelho procurei a minha face
A que deveria existir
Marca de origem, indelével impressão
Apenas uma mancha me olhou
Indistinta
Vaga forma de ponto de interrogação



Foto by Michael Sloane

domingo, janeiro 14, 2007

Escritos do frio (II)





Cumplicidade


Era o dia a seguir ao Natal. Havia sol. E vento. No frio procurei a pureza que os dias de Inverno carregam consigo, aquele olhar gelado que nos expurga das (in)dolências do conforto dos lares aquecidos. Junto ao mar, deixei-me levar pela brisa meio agreste e dei o rosto ao sol, como oferenda repetida pelas dezenas de pessoas que por ali andavam, entre um café tomado a olhar a marina e um passeio até ao final do pontão, onde a vista se espraia até à ponte e ao outro lado. Mar-rio, rio-mar, um contínuo de azul.
Vi-os sentados na ponta dum dos bancos do caminho. Passei à frente e voltei. De costas, eram a imagem de uma vida de cumplicidades, de amor/amizade, de paixão já remota. Seriam tudo isso ou não. Foi assim que os vi. Foi assim que os fiz passar para dentro da minha câmara de ilusões.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Somos...





Porque foi nosso o instante
parado o tempo na beira do lençol
e a chuva se quedou expectante
do rio no meu peito.
Porque a tarde se reinventou
no raiar de límpidas madrugadas
e o dia azul de súbito caiu
em luz escura.
Porque sempre estás perto
nas horas cegas longas brancas
que palmilham o deserto
da noite à luz do sol.

Porque somos muito e nada
Porque somos pouco e tudo
Porque somos.


Foto by Katia Chausheva

domingo, janeiro 07, 2007

Escritos do frio (I)






Um lugar estranho


Foram exactamente até ali. Àquele ponto onde, se não tomassem cuidado, a alma se precipitaria num abismo de emoções. E, à vista desse abismo, recuaram. Ela diz que ele recuou. Mas talvez não seja justo. Será que queria dar esse salto? Provavelmente não.
A verdade é que todos os recuos matam parte do que se ganhou pelo caminho. Caminhar ao invés sobre os próprios passos apaga as pegadas do caminho inicial. E, em cada uma, estão emoções, ânsias, desejos. Em cada uma está um pedaço da rota para algo que nunca se sabe exactamente como vai ser, que se deseja e se teme.
Aceitaram um compromisso de ficar entre o início e o fim do caminho. Mas talvez se tenham esquecido que já não são os mesmos e que aquele ponto onde se encontram também não tem um significado igual. Existe por ali um frio que os ataca interiormente. Na verdade, sentem-se perdidos. Por vezes, nem se reconhecem nas palavras que dizem ou não dizem. Não sabem o que esperam. Depois de ter chegado àquele lugar estranho a que chamaram amor, como voltar atrás?





Foto by Arthur Leipzig

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[Obrigada a quem traduziu (de forma poética mas nem por isso muito adequada), "Lost in translation" por "O amor é um lugar estranho". Independentemente do extraordinário filme que não tem nada a ver com o que escrevi, a frase serviu-me de inspiração.]

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Fim de festa





Corta-me a alma
a pungente melancolia do fim
das festas obrigatórias.
Rasgo-me nos papéis coloridos
nos laços desmanchados nas patas dos gatos,
arrasto-me pelos sofás nos roupões
de quem já despiu a roupa festiva,
guardou as prendas de ontem
com a certeza de que hoje é um dia
igual
sem magia de estrelas nem dourados.
Enjoo-me nos restos de abundância
festim dos que vasculham os caixotes.
Procuro na manhã gelada
a luz que me lave alma e corpo
de tanto e tão pouco.
Eu sei. Só amor, chegava.



Escrito em 26/12/2006

segunda-feira, janeiro 01, 2007

E 2007...





Lá chegámos a 2007. Lembro-me de ser uma meta absolutamente mítica, atingir o sec. XXI . E agora aí vai ele, em bom ritmo. Nesta época, aparece sempre quem faça previsões, algumas tão óbvias que qualquer de nós as poderia fazer, outras tão fantasiosas que, por vezes, até se realizam… Não é a vida uma caixa de surpresas? Ou será uma caixa de chocolates, como dizia aquela personagem de um filme que eu teimo em não gostar, quando toda a gente adorou?
Hoje também me apetece fazer previsões. Sem cartas nem bola de cristal, isso já “era”…
Comecemos pelo mundo. Prevejo que as guerras vão continuar em 2007 e provavelmente outras surgirão. Afinal, continua a existir uma forte indústria de armamento… Logo, não será em 2007 que a situação no Médio Oriente estabilizará. Não será em 2007 que o terrorismo (nas suas diversas formas) terá um fim. E não será em 2007, blá, blá, blá….
Prevejo que as alterações climáticas continuarão a fazer-se sentir. Não me parece que os países mais poluidores estejam interessados em tentar reverter a situação. Assim, lá virão as inundações, o calor e o frio intenso fora de época, etc. etc…Até um destes dias.
Prevejo que a miséria continuará a existir, as crianças a morrer de fome, uma enorme fatia da população mundial a ser explorada, maltratada, abusada. E por aí fora, apesar dos muitos movimentos e iniciativas de solidariedade aos quais eu adiro sempre. Se ingenuidade enriquecesse, eu já seria milionária.

E agora, Portugal, este país à beira-mar plantado. Não me parece que o deficit se equilibre em 2007. E, sendo este o assunto que determina toda a política do governo, prevejo que vamos continuar a ter mais do mesmo. Quem gosta, fica feliz. Eu, funcionária pública e portanto acusada e considerada culpada de todos os males deste país, que mais posso dizer? Que espero, em 2007, continuar a ter trabalho e não ter que ir parar a quilómetros do local onde vivo. E mais nada, até porque o meu dom de previsão não chega para tanto. Ou talvez… posso, pelo menos, desejar que o “emagrecimento” de muitos não se faça à custa da “engorda” de alguns.

Imagino que as previsões não agradem. Vá lá, mesmo assim, desejo a todos um Ano Bom, em 2007. Porque há coisas que se podem ter fora deste cenário. Saúde e amor, por exemplo. Que sejam abundantes para todos!




Foto by Michael Kenna