sexta-feira, setembro 26, 2008

A casa do jardim




Ali estava, frente à entrada. Procurava na memória o tempo em que vivia na casa do jardim. Davam-lhe o nome as flores e a hera que entrevia sempre que a mãe lhe abria a janela do quarto. Para deixar entrar o sol, dizia, mesmo quando lá fora a manhã era cinza. A mãe tinha olhos verdes. Lembrava-se desses olhos de esperança da sua infância. Quando pensava nisso, parecia-lhe que a cor dos olhos dela mudara, à medida que a vida passava. A última lembrança trazia-lhe a cor cinzenta, baça. Depois, era a ausência. O silêncio. Ninguém lhe disse o que tinha acontecido. Ninguém mais lhe abriu a janela do quarto na casa do jardim. Pouco a pouco, lembrava-se de perceber o abandono que em tudo se reflectia. Ainda conseguia entrever os sinais da negligência e a tristeza que das pessoas passava para as paredes da casa. Até que todos a abandonaram de vez. Todos partiram. Ela seguiu a vida possível e foi esquecendo os dias felizes embalados pelos olhos verdes de esperança. Durante muitos anos, não quis passar pela casa do jardim. Muitos anos, os de ser mulher, os de criar filhos, os de envelhecer. Os de se sentir só, plena de lembranças. Agora olhava a ruína em que a casa se tinha tornado. Enfrentava-a, finalmente. Com a ternura de quem sabe que uma casa não é só paredes e conforto. É o amor dentro dela. O amor que faltara para manter o verde dos olhos da mãe.



[No PPP , o tema da semana passada foi "Ruína" e esta foi a minha foto. Depois deu-me para escrever à volta dela... Um bom fim de semana para todos! ]

22 comentários:

naturalissima disse...

Estas fotografias, tocam-me de forma especial. têm alma... falam de muitas vidas... têm sabor, côr, cheiros do tempo.

bela edição.
:)

Justine disse...

Nostálgico, melancólico e muito belo, o teu texto.

(também sou fâ do Coltrane, e já usei o "Blue in Green" num post:)))

Bom fim de semana

jawaa disse...

Gostei muito de ler-te aqui, numa composição como hera a subir na ruína.
Um abraço

pin gente disse...

há tantos olhos baços repletos de amor... recorda bem... um pouco melhor! por vezes é o turvo dos nossos olhos aparentemente transparentes que nos impede de ver!

gostei muito... voltamos aos locais onde fomos felizes.
um abraço
luísa

SMA disse...

Renovas em espiral transgeracional
vda
.
.
.
cimento
bjo de cristal

Nina Owls disse...

Dás uso ás palavras, envolves-nos nessa gastura, inventada ou não, e fazes-nos acreditar que todo o amor se perde quando se percebe o baço e a ausência de olhar materno. :) amei este texto, alice
Bom fim de semana.

... disse...

"Com a ternura de quem sabe que uma casa não é só paredes e conforto. É o amor dentro dela."

Era bom que que tomasse consciência que um abraço, um beijo, uma gargalhada, as lágrimas partilhadas, é que fazem da casa um lar acolhedor e não o ecrã gigante topo de gama da B&O...

A minha mãe tem olhos verdes... :)

Maria Clarinda disse...

E como ficou a bonica, a fotos(sempre lindas e com uma carga forte) e as tuas palavras que nos fazem viajar através do passado até ao presente.
Parabéns.
Jinhos

Anónimo disse...

E aconteceu um blo texto! Muitos de nós já tivemos uma casa do jardim e uns olhos verdes a acorda´r-nos todas as manhãs. Tocante!

Marinha de Allegue disse...

Encantoume a conxunción imaxe-palabras, con ese tinte do paso do tempo que impregna de gran vida vivida, de enerxías pasadas...

Unha aperta grande.
:)

hfm disse...

Da ruína que se faz memória.

Mateso disse...

Os verde dos olhos tal como a hera agarram-se às paredes, ora por meio de gavinhas ora por laços de amor. E como ambas são vida desvanecem no tempo. No entanto ,a memória mais do que a dor persiste na razão de todos os dias.
Lindo
Bj.

M. disse...

Que bonito texto à volta de uma fotografia belíssima!

Manuel Veiga disse...

texto muito bem escrito. dificil escrever sobre um tema. e a ruina que descreves é uma mensagem de vida.

beijos

JPD disse...

E escreveste um belíssimo texto, Vida de vidro.

Sempre que olhamos para uma casa em ruinas e nos lembramos de quem lá viveu, afligimo-nos imenso.

Teriam sido submetidos a um imprevisto, a uma daquelas atrocidades a que a vida nos tenta subjugar?

Esmagados por tamanho sobressalto, nem sempre fazemos o exercício inverso, o de pensar que a seguir a esta casa, vazia e em ruinas, uma outra se ergeu e se encheu de gente cheia de futuro e a rebentar de felicidade.

Bjs

Lord of Erewhon disse...

Somos ruínas de nós mesmos e de tudo.

Dark kiss.

Maria Clarinda disse...

Vim v er se tinhas mais uma foto linda e as tuas palavras a acompanhá-le. Jinhos muitos.

CNS disse...

Tão belo este teu texto cor de verde-memória...

um beijo

pront'habitar disse...

fizeste bem em escrever à volta dela...
e, o que escreveste não é fantasia. é a realidade. a minha morreu há doze anos e desvio-me sempre para não enfrentar o prédio da minha infância.

é uma fraqueza minha, eu sei...

Nilson Barcelli disse...

E escreveste muito bem à volta dela.
O declínio familiar é acompanhado muitas vezes pela decadência progressiva da casa respectiva. É uma situação muito comum...
Gostei da foto e do texto, muito bons.
Beijinhos.

batista disse...

existe um poema de Mário Quintana, existe o que penso... e agora o que escreveste acerca d'A Casa do Jardim... grato, de coração, pela situação que (re)criaste nesse post.

quanto ao poema de Quintana:

"Quem disse que eu me mudei?
Não importa que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa em que nasceu.”

quanto ao que eu penso/sinto acerca de... fica p'outra feita, rss!

uma beijoca fraterna.

Laura Ferreira disse...

gostei. muito.
também gostei de te "ver" no meu espaço e de descobrir o teu.

Voltarei.