segunda-feira, agosto 18, 2008

As noites do rio



De noite o rio não dorme. Na incerteza do caudal que o mar lhe permite, torna-se ruína de pedras e lodo ou braço de água bem pleno, a reflectir as luzes da cidade amada. A ponte, que dizem ter sido pisada por homens de tempos passados e outras glórias, é o ponto de paragem de quem olha, de quem ali encontra o pedaço de alma que só certos lugares nos devolvem. Entre a ponte e o rio existe um amor antigo, feito de aproximações e fugas. Por vezes ele quase a beija para logo a seguir se afastar, raso no fundo do leito. Nas renovações e desencantos de cada dia, perdura o amor daquele rio pela ponte que o completa.
A vida que fervilha na água também não pára nas horas em que o sol se esconde. Peixes movem-se em conjunto, dançando estranhas coreografias. Por vezes saltam fora de água, reflexo prateado que a lua acentua. Volteiam, aproximando-se do local onde o homem lhes costuma dar pão. Que razão leva um empregado de café, perdido entre gente diferente daquela com quem foi criado, a ser amigo dos peixes do rio? São estranhos os afectos que a vida nos põe no caminho.
Na maré vazia, quando a água é escassa e o leito aparece, impudico, os homens escavam na lama, à procura do que lhes dará o sustento do dia seguinte. Enquanto a maré permitir.
No cais, onde a água já está mais perto do seu destino, ecoam os sons da azáfama dos homens nos barcos que ainda não saíram. Todos preparam o dia que se segue, sem que a beleza da noite os faça parar. Só o rio se estende, preguiçoso, namorando agora a lua e a cidade. Quem olha, deixa que a fascinação domine as horas da noite.

15 comentários:

M. disse...

Para quem, como eu, tem estado nesta cidade abafada, é um pouco de frescura a que nos dás hoje com o teu texto tão delicado. Gostei muito. Continuação de boas férias.

M. disse...

A fotografia lembrou-me Florença vista de longe, com a ponte ao fundo.

Anónimo disse...

Em todo o Algarve, Tavira é a minha cidade preferida. Ali aliam-se o passado ao moderno sem se destruirem um ao outro. Exemplo a seguir.
Boas férias.

Nina Owls disse...

Os afectos que a vida nos põe no caminho são mesmo estranhos. O empregado de café, perdido entre gente diferente, as vezes indiferente, alimenta uns amigos de cobre que se esperneiam dançarinos ás vezes com a lua. Que delicia, até a escuridão, a lama, o catar de sustentos. O rio dorme e a ponte embala-o. Magnifico. Bom fim de semana Alice

Melga do Porto disse...

Texto denso que algo esconde.
Sensações vividas, adiadas ou que se buscam.
“São estranhos os afectos que a vida nos põe no caminho.”
Serão!
Ou somos nós que os estranhamos por “especiais”.
:-)

bettips disse...

Ouvia falar de Tavira, em férias sempre apressadas para chegar a outros destinos. Este ano, pude rever um caminho que me disseram antigo, onde a "tropa" se preparava para as "colónias". A mansidão das margens de rio sem nome conhecido: o Gilão que se perde em rias fermosas. Encantou-me, sim, que afectos são, muitas vezes, os sentimentos preciosos que brilham nesta mina escura de viver.
Bj

... disse...

O que eu sei é que te encontrei!

Justine disse...

Encantadora e emocionada declaração de amor pela tua cidade. E quem não fica a amá-la um pouco mais depois de te ler?
Beijo

hfm disse...

Que bela esta leitura... e saudades de te ter por aqui.

Manuel Veiga disse...

texto muito impreessivo. excelente na descrição e na sensibilidade do olhar...

beijos

M.P. disse...

Olá! Fiquei contente de te ver de novo no meu espaço. Lindo este texto de palavras-água que nos deixas como brisa fresca para este resto de Agosto que aqui no Norte trouxe um Verão bem à Europa do Norte. Continuação de BOAS FÉRIAS! Beijos

Unknown disse...

O rio nunca descanse corre sempre em direcção à foz às vezes calmo...outras agitado...mo mar tenta sempre chegar ao seu destino...e nunca há dois rios iguais.
um abraço
brisa de palavras

Anónimo disse...

Olá!

Estamos sempre confrontados com um dilema:

O espelho de água de um rio e a inesgotável emoção que ele proporciona;

A agitação e quase «prepotência» do oceano que tantos nos surpreende como nos esmaga pela violência das suas fúrias, pelos despojos da sua inclemência. Ou até pela imobilidade que é capaz de exibir (Relembre-se o desespero do velejadores em águas calmas e sem vento em pleno oceano).

Elemento adicional:

A noite empresta a todas estas emoções uma carga superlativa.
É sempre à noite que a ilusão nos acalenta.

(Palpite: a foto é do Gilão, em Tavira?)

Belíssimo regresso.

Bj

pin gente disse...

vejo que regressaste. ainda bem.
eu voltarei com tempo

beijo
luísa

pentelho real disse...

oh, como gostaria de saber descrever assim tudo o que me rodeia. compreender os sentires das águas e dos montes. e das gentes...