Um dia alguém perguntaria como
tinham conseguido viver naquele tempo. Uma era de perdas, desencantos, de
revoltas reprimidas, caladas na garganta e não gritadas no vento, de pesadelos
sobre o dia seguinte. De alguma forma, tentava pôr a navegar o barco verde que lhe
ficara parado nos olhos. Não encontrava o caminho dos rios, muito menos a rota
infindável do mar. Mas provavelmente isso não iria interessar nada aos que,
mais tarde, tentariam fazer a história daqueles dias. Nos escritos em que
ficariam registados os acontecimentos daquela época, que importância podia ter
o barco verde que se desfazia a pouco e pouco e nunca mais sentiria o fluxo das
águas a empurrá-lo? E, quando a história se fizesse, ela e o barco estariam
longe, nas terras para lá da terra. Nesses lugares que não conhecia, estranhas
lonjuras envoltas em nevoeiros de dúvida. Mas voltando à arte de sobreviver
naquela época, talvez todos guardassem o seu barco. De cores diferentes, com
diferentes ânsias de atingir a água. Seria o desejo comum de navegar que lhes
mantinha a esperança dum amanhã diferente? Não seriam todos barcos vagueando, à
procura da corrente favorável? Pensava, mas não diria nada aos pretensos
historiadores, que o que os fazia viver por aqueles dias era a incerteza. Meia
certeza, afinal. Meia certeza de que, um dia, a água estaria perto. E, dos
olhos de todos, partiriam os barcos. Para onde? Essa era outra história para
alguém contar.