
Tudo começou numa conversa com o vizinho do 4º esquerdo. Quando se encontravam no café, em frente à bica a escaldar, costumavam falar sobre os problemas da actualidade, sobretudo do país. Dependendo do humor do vizinho, um bocado variável, por vezes vinha à baila o futebol. O homem era adepto de um clube em maré de azar e ele compreendia que esse assunto fosse, frequentemente, votado ao ostracismo. Era assim o nosso herói. Compreensivo e amante da concórdia, o que chegava a ser confundido com falta de “espinha vertical”. Eu, que o conheci razoavelmente, sempre achei que o casulo em que parecia encolher-se era a sua protecção contra discussões e mal-entendidos. Era uma daquelas almas que estão sempre bem colocadas num movimento pacifista, entendido como aqueles que começam por praticar a paz.
A tal conversa de que ia falar, quando comecei a divagar, deu-se numa bela noite estrelada e transformou a vida do nosso homem num inferno. Acabavam de sair do café, discutindo o estado calamitoso do país, e depararam-se com um luar imenso que conseguia inundar de luz irreal todo o bairro. Até parecia um bairro bonito, pensou o meu amigo, perdendo o olhar num leve vapor de neblina que pairava no horizonte. E, virando-se para o vizinho, num rompante de que ainda hoje se arrepende:
“Sabe, precisávamos era de uma luz assim para conseguirmos gostar desta terra.”
O vizinho, homem culto mas de pés assentes no chão e pouco dado a divagações, olhou-o estupefacto:
“Homem, você é um nefelibata!”
O nosso herói engoliu em seco. Como responder? Como se responde quando não sabemos o que nos estão a chamar e, ainda por cima, detestamos discussões?
“Talvez, talvez. Até amanhã, vizinho”
Durante dias não dormiu e quase não teve apetite. Não sabia se tinha sido insultado e estava tão convencido que a palavra nem existia que não se lembrou de consultar o dicionário. Mas, quando me contou a sua enorme dúvida, fui com ele folhear o que encontrei mais à mão. E lá estava, entre outras coisas:
nefelibata
“indivíduo que, animado de um ideal, não atende aos factos da vida real, positiva”
Benditos sejam os dicionários! Este pôs um sorriso enorme no rosto torturado do meu amigo.
[Texto publicado no 5º jogo das 12 palavras, a saber: casulo, conversa, inferno, inundar, luar, movimento, nefelibata, ostracismo, país, vapor, variável, vertical. Beijos, abraços e bom fim de semana!]