segunda-feira, setembro 27, 2010

Terra, poiso, ninho

Lembrava-se por vezes do pássaro multicolor e, quanto a essa época da sua vida, muitas eram as interrogações. Não sabia já razões de chegada ou partida. O facto é que voara sobre ela e lhe deixara farrapos de cor e marcas indeléveis. Desse tempo, as memórias começavam a desvanecer-se mas o eco que restava do canto da ave levava-a aos dias em que lhe era poiso, ninho de repouso. Via-o voltar ao voo sem ressentimentos. Talvez as cores precisassem de se espalhar para terem o brilho original. Até que foi a era da partida, sem volta anunciada. Assim como chegara, voou para longe. Deixando-lhe todas as interrogações.
Todos os sentidos lhe diziam que, num tempo que já não sabia precisar, os seus olhos só viram cinza. Como se quisesse reter a sombra das asas do pássaro. Mas, como tudo o que tem que acontecer, outras cores foram reaparecendo. A vida coloriu-se em tons de melancolia longínqua com ligeiras aparições de outros brilhos. Só a música não voltou. Escutava, de olhos cerrados, os ecos distantes. Reconhecia-o, por vezes. Afastava o desejo de ser terra, poiso, ninho. Seguia o trilho contrário, aquele onde os penhascos não reflectiam cores e sons e não existiam pássaros multicolores.

quarta-feira, setembro 22, 2010

Outono

by Gonçalo de Sousa Santos

tempo de Outono. um imprevisível vento indeciso surge entre a luz de verão. partilhamos a vida entre dias pálidos e carícias avaras de sol inconstante. pequenas gotas de água acariciam a pele, mais do que molham. esperamos os dias em que as folhas verdes se deixam cair em cores quentes, tranquilas. só depois virão as tempestades. fazemos, passo a passo, o caminho do Inverno.

domingo, setembro 19, 2010

Nunca?


by ...............

Nunca. Sempre. Não dizia aquelas palavras. Não as pensava. Não as adoptava como suas. Pediram-lhe que dissesse “sempre”, ou que prometesse um qualquer “nunca”. Contornara a questão. Nada era para sempre, não existe a certeza de um nunca. Talvez por isso lhe chamavam esquiva, fechada em si como as ilhas rodeadas de bruma.
Esperava ser possível romper o bloqueio dessas palavras. Um dia sentiu que era possível dizer sempre , na situação mais improvável.. Disse-o com a mesma certeza com que se tinha negado a fazê-lo até aí. Sempre, apesar de todas as circunstâncias. Soou-lhe bem e ultrapassou dolorosos obstáculos porque assim tinha que ser. Sempre.
A lógica da vida mostrou-lhe que não há excepções às regras que sabia serem certas. Foi tão fácil desfazer aquele "sempre"... O único que tinha dito. Alguém soprou o sonho contido nele e, tal como uma bola de sabão, simplesmente desapareceu. O mundo voltou ao que não devia ter deixado de ser. Nunca.

quarta-feira, setembro 08, 2010

Um ponto, um porto


By Gennadi Blohin

São pequenos os passos, amarrados a um peso incerto. Existe um centro de gravidade, um ponto de equilíbrio. Perdido no horizonte rugoso e denso. Sem referências, o passo perdeu a leveza do voo. Arrasta-se, ave de asa partida. Até que algo se aplane, transpareça e se ilumine. Um ponto, um porto. Uma luz de alma. Um pequeno vórtice de alegria.

sexta-feira, setembro 03, 2010

O rio de marés


Tavira, rio Gilão


Agora que o Tejo é o rio que me preenche o olhar, já me falta o outro rio. Aquele rio de marés que sempre me emociona, no seu movimento suave. Enche e despeja devagar como se respirasse. Reflecte a cor dos barcos e o sabor do sal e do peixe que o percorre. É um rio e o seu fim, o seu abraço interminável com o mar.
Sobre o rio os homens construíram pontes. Em cada uma, a visão da cidade branca traz novidade, aquele detalhe ainda não observado. O dia é um jogo de gradações de luz, a noite é pura magia, uma brincadeira de namoro com a cidade iluminada.
Há muitos anos, conto tristezas e alegrias a este rio. De alguma forma, as águas tudo misturam no seu destino final. De alguma outra forma, sinto-me mais leve na certeza de compartilhar vivências com um amigo.
Agora que voltei da cidade, da ilha, trago o desejo das águas daquele rio e a certeza de que foi o destino de férias certo. Ali onde a vida se cria e se colhe, onde se faz magia do que o mar traz, ali onde o rio fala comigo enquanto as águas se renovam constantemente.