domingo, abril 29, 2007

Uma manhã




E aí está a manhã
Só mais uma na corrente dos dias
Sem que nada a torne singular
Um claro cinza cortado pelo vento
Como em tantas outras manhãs
Cinza.
Na margem do poema
Soa o estranho grito do silêncio
Interior.
Dentro dele viajo sem destino
Sem rumo exacto que me leve.
Na manhã comum
Corre, idêntico, o fio das horas
Mas eu não estou
Idêntica
Cinza
Comum.


Foto by Cyril Auvity

quinta-feira, abril 26, 2007

Duas estações para uma árvore




Era Inverno. Ou Outono rigoroso. Difícil se torna distinguir estações, em tempos de mudança. Nessa época, costumava olhar os braços nus da árvore que tremia ao ritmo do vento, esperando pacientemente que aquele frio desaparecesse. As árvores têm uma sabedoria própria e resistem, dobrando-se sem partir. Aquela parecia frágil, mas ainda assim acolhia os pássaros, em manhãs de sol, nos seus braços delgados e nus.
A Primavera vestiu-a de uma folhagem avermelhada que lhe aumentou a beleza. Perdeu o ar de espectro cinza em louvor da nova estação. E abriu as folhas para que se visse como a luz do sol lhe ficava bem. Imagem da felicidade, saberá ela que o Inverno volta breve?

terça-feira, abril 24, 2007

Vermelhos, os cravos...




São cravos vermelhos.
De esperança. De alegria. De luta.
De sorrisos. De olhos molhados. De muitas amarguras.

Neste dia, os cravos serão sempre vermelhos.
Do desejo de franquear “as portas que Abril abriu”.
Da vontade de não as deixar fechar.

domingo, abril 22, 2007

A casa




Aquela terra tem cheiro de marasmo, de gente parada em vidas sem chama. Talvez seja só a minha reacção, química negativa que eu tenho com o chão onde nasci. Talvez renegue raízes, porque reconheço minhas outras terras, não aquela.
Naquela terra o calor sufoca no Verão e, no Inverno, fustiga-nos o frio . Terras longe do mar, diz-se. Mas não existe essa lonjura toda.
Dizem-na bonita, os que a vêem de fora. Talvez, se não penetrarmos no seu interior, seja possível achá-la bonita. Tem um rio, talvez agora mais um fio de água. E há uma qualquer beleza especial nas terras que os rios atravessam. Talvez…
O meu caminho ali é sempre igual, entre a visita a quem decidiu ali repousar para sempre e a casa. A casa é como um cofre onde estão memórias guardadas. Memórias misturadas. Daquela bisavó que eu julgava que viveria para sempre. Uma doce memória, que arrasta outras não tão agradáveis. As minhas memórias de criança amada mas solitária. A querer entender os problemas dos adultos. As minhas memórias de adolescente que ali voltava, nas férias. E que revivia a realidade daquela rua estreita. Nas noites de Verão, da taberna do outro lado da rua, que é agora uma pastelaria, saíam os bêbados que iam desabafar desgraças no beco ao pé do quintal. Deitada, nas noites quentes em que o sono não chegava, ouvia-os invectivar a vida.
Por vezes, na casa ainda ecoa a memória de gargalhadas de crianças, abrindo as prendas do Pai Natal. Conseguiam até ouvir os sinos do trenó. Essas são as lembranças mágicas de um tempo feliz. Gostava de poder ficar só com essas e não ver, em cada canto da casa, outros dias, outras tristezas que me fazem ter para com ela um sentimento ambivalente.
É a casa, a única raiz que reconheço, mas está demasiado carregada de recordações. E de perdas. Como a vida.





[No Palavra puxa palavra o tema foi "Interior". Esta foto é da casa, a da minha infância e o texto foi escrito em Outubro 2005.]

sexta-feira, abril 20, 2007

Thinking blogger






O Sérgio que, para mim, é um poeta que trabalha com a câmara fotográfica em vez da palavra (então e aqueles títulos das fotografias?), achou que o meu blog o faz pensar. A Lena Maltez, que me maravilha com cada poema que escreve, também.
A Manuela que, Palavra puxa palavra , me levou a pegar na câmara e tentar fazer uma “espécie de fotos” achou que o Vemos, ouvimos e lemos também é um blog que faz pensar.

É curioso que, sendo isto apenas mais uma cadeia da blogoesfera, fazer pensar é uma razão muito gratificante para ser “nomeada”. Quando escrevo, seja pura ficção ou reflexo límpido de mim, gosto de ser lida e de sentir que quem está do lado de lá pensa no que leu. Valha-nos essa capacidade de pensar e tentar entender o que o outro diz…
Assim e agradecendo, do coração, ao Sérgio, à Lena e à Manuela, o facto de pensarem sobre as palavras que por aqui e por lá surgem, sigo as regras da cadeia e passo-a a estes blogs que, por diferentes razões, estão entre os que me fazem pensar:


De pernas para o ar – pela sensibilidade, pela contagiante loucura.

O sítio do poema – mas é preciso justificar? Poemas de vida transformada em beleza pura.

Owls 2 – porque ela faz crónicas, ela escolhe música, vídeos, fotos, poemas… e tudo com qualidade. Como consegue?

Meia_Praia – ela sempre me fez pensar. E faz perguntas terríveis… :)

Terra, mar e horizontes – pela sensibilidade desarmante dos seus poemas.


Para todos, um beijo e a certeza que os leio com muita atenção.



Foto by Kamila W.

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P.S.: para continuar a cadeia, devem copiar o símbolo do prémio, pô-lo no vosso blog e nomear outros cinco. Se quiserem, claro...

quarta-feira, abril 18, 2007

Poema de mim...




Ah, se soubesse fazer um poema
De métrica incerta
Sem rima, sem tema
Palavras sentidas, sabidas
Rentes à terra vermelha da alma
Poema cristal comigo espelhada
Um jorro de versos no dia real
Grito de vida em letras rasgadas
Ah, se soubesse
Gravar nas palavras aquilo que sinto
Dizer o que calo e, calando, minto
No verbo encarnar horas que vivi
Das mãos abertas faria brotar
Um poema único de mim para ti.


Foto by Marina Jerkovic

domingo, abril 15, 2007

Da cor dos malmequeres





Sabem de que cor são os malmequeres? Brancos, amarelos, as duas coisas? Respostas prosaicas. Os malmequeres são cor de primavera. Esta é uma resposta poética.
Também a água não é bem água. Talvez seja um fio de prata ou um líquido caudal. Ou qualquer outra coisa. As cores não são bem as que vemos, mas as de alguma improvável paleta. E sobretudo a dor não é dor. Chamemos-lhe o que quisermos, mas não lhe chamemos dor. Nem tristeza, nem solidão. Nem sequer a tão desejada felicidade. Recorramos a todas as figuras de estilo. Sublimemos. Sobretudo, sublimemos. Façamos um enorme silêncio sobre a vida real, deixemos a poesia dizer do mundo inventado onde, ao de leve, só ao de leve, pairam os nossos sentimentos.
Será para isto que serve a poesia? E será que a poesia tem que servir para alguma coisa? Não para mim, não hoje, sobretudo.
Mas nem sei como vim parar aqui. Hoje eu só queria saber de que cor são realmente os malmequeres. Os verdadeiros que existem nos campos e se sentem nas mãos quando os colhemos. Nos campos reais, da terra real onde cresce a verdadeira vida.




Fevereiro 2006

quinta-feira, abril 12, 2007

O espectáculo continua



Óleo sobre tela de Júlia Calçada


Trazia a alma dorida nas pontas dos pés. Em cada músculo o sangue latejava, o coração batia, como se o único sentimento conhecido fosse o cansaço. Cada movimento, cada decisão rasgava o cetim, rasgava-lhe a pele. Queria parar ali, não ouvir nem mais um compasso da música e atirar para longe as sapatilhas, admitir que aquele espectáculo não era o seu.
Os acordes entraram-lhe no ouvido e tudo no seu corpo se rendeu, se submeteu. A dor retirou-se lá para bem fundo, para onde já nem a conseguia sentir. Ergueu-se no cetim sujo das sapatilhas de tantos momentos inesquecíveis e viu-as brilhar. Os pés seguiram a alma que dançava ao som da música envolvente, sedutora. Deixou-se ir, voou, viveu o momento daquela dança. O espectáculo tinha que continuar.




[Para responder ao desafio da Maria, que agradeço, sensibilizada]

terça-feira, abril 10, 2007

Esta cidade





A cidade mostra-se aos meus olhos que dela já só viam uma lembrança longínqua. O ecoar de passos antigos nas velhas pontes do Sena acorda os dias de outrora, os passeios encantados em que tudo era novo, diferente, belo. Hoje esta é a cidade íntima, (re)conhecida, quase familiar. Feliz coincidência, a de estar aqui quando a vida rodopia à minha volta sem que saiba onde e quando vai parar. Ou será que as coincidências são forçadas por nós? Que importa? Esta é uma cidade para ser feliz. Para amar cada minuto de cada hora. Para abraçar a luz inigualável. E, por agora, isso basta.




6 de Abril 2007